O marxismo de Tina Modotti

Fotógrafa, jornalista, tradutora e atriz, buscou convergir estética e ética revolucionária; foi militante comunista e feminista, atuando pelo Socorro Vermelho (da Internacional Comunista), no México e em outros países

Por Ândrea Francine Batista e Yuri Martins-Fontes *

TINA MODOTTI; Modotti Mondini, Assunta Adelaide Luigia (ítalo-estadunidense-mexicana, Údine/Itália, 1896 – Cidade do México, 1942)

1 – Vida e práxis política

Assunta Adelaide Luigia Modotti Mondini, ou Tina Modotti como ficou conhecida, nasceu numa família de operários italianos. Sua condição de vida exigiu que desde cedo trabalhasse com a mãe, Assunta Mondini Modotti, como costureira em uma fábrica. Seu pai, Giuseppe Saltarini Modotti chegou a trabalhar como fabricante de bicicletas de bambu numa pequena cidade da Áustria, mas em 1906 migrou para os Estados Unidos, em busca de trabalho, enquanto a família permaneceu na Itália.

Ainda criança, Tina teve proximidade com as lutas sociais: seu padrinho de batismo, Demétrio Canal, foi integrante do círculo socialista de Udine; e seu pai, conforme ela afirma, foi um “socialista” e “firme defensor das causas sindicais”, levando-a certa vez em uma mobilização do dia 1º de maio.

Conheceu a fotografia com seu tio Pietro Modotti, que possuía um pequeno estúdio, frequentemente visitado por ela. Com 16 anos de idade, em 1913, viajou ao encontro do pai, que vivia em São Francisco (EUA); desembarcou no país, justamente em um período no qual crescia a hostilidade à migração italiana – declarando-se estudante e sem vínculos com o movimento anarquista. Giuseppe assumiu o nome de Joseph, e trabalhou em sociedade num estúdio fotográfico, enquanto Tina e sua irmã Mercedez faziam serviços de costura.

Encantada pela arte, Tina passou a frequentar teatros e exposições. Foi assim que, em 1915, estabeleceu relação com o pintor e poeta Roubaix de L’Abrie Richey – conhecido como Robo –, com quem se casaria. Mudaram-se para Los Angeles, onde atuou como atriz em peças teatrais, óperas e cinema; sua estreia na indústria cinematográfica se deu no filme The tiger’s coat.

Com o passar dos anos e a movimentada vida artística, sua relação com Robo entrou em crise. Foi quando conheceu o fotógrafo Edward Weston, com quem aprenderia a arte fotográfica, iniciando assim sua carreira nesta área. Tina e Weston construiriam uma estreita e duradoura relação, tanto amorosa como de trabalho.

Em 1921, Robo, a convite do Ministério de Educação do México, mudou-se para este país, levando trabalhos de Tina para montar uma exposição. Em fevereiro de 1922, ela se encontraria com Robo, mas recebeu a notícia de sua morte por varíola; empenhou-se, então, em concluir a mostra iniciada por ele – na Academia Nacional de Belas Artes, na Cidade do México. Em março do mesmo ano, seu pai faleceu, forçando-a a regressar aos EUA.

Pouco depois, em 1923, Tina e Weston decidiram deixar os Estados Unidos, rumo ao México, animados com as possibilidades de encontrar aí um ambiente mais favorável para desenvolver sua criatividade artística e, inclusive, sua relação afetiva. Estabelecidos na capital do país, passaram a frequentar círculos de artistas socialistas, tendo logo conhecido o pintor muralista Diego Rivera (1886-1957). Em 1924, Tina posou para Weston, em um ensaio fotográfico de nudez – cujas imagens, mais tarde, seriam usadas por Rivera em alegorias de suas monumentais pinturas (no edifício central da Secretaría de Educación Pública, Cidade do México).

Por esse tempo, Tina começou a trabalhar em projetos fotográficos, junto ao mexicano Manuel Álvarez Bravo (1902-2002), além de contribuir com as campanhas de solidariedade construídas pela Internacional Comunista (IC) – em que atuou especialmente contra a condenação de Nicola Sacco e Bartolomé Vanzetti (anarquistas italianos executados na cadeira elétrica, nos EUA), e no Comitê em Defesa da Nicarágua (contra a invasão estadunidense).

Em 1927, Weston decidiu retornar definitivamente aos EUA; Tina permaneceu no México. Nesse mesmo ano, filiou-se definitivamente ao Partido Comunista Mexicano (PCM), colaborando com fotos e traduções para seu jornal El Machete. Considerou a atividade política com grande seriedade e consciência de suas responsabilidades. Engajada na luta revolucionária, sua fotografia tomou uma perspectiva de classe, ao documentar a vida cotidiana de trabalhadores, as lutas camponesas e mobilizações sociais. Tornou-se a principal fotógrafa do Movimento Muralista Mexicano, documentando obras de seus principais representantes – e também militantes socialistas: Diego Rivera (quem, por sua vez, a retrataria em seus murais), José Clemente Orozco (1883-1949) e Xavier Guerrero (1896-1974). Em sua casa, faziam reuniões informais para discutir o papel da arte e da literatura no processo revolucionário.

Foi neste contexto que, em 1928, conheceu seu futuro companheiro Júlio Mella (1903-1929), liderança do Partido Comunista de Cuba, que se encontrava exilado no México; a relação duraria até o assassinato do marxista, no ano seguinte, por agentes do ditador cubano Gerardo Machado. Em meio às tensões políticas que caracterizaram o período, Mella foi morto em uma noite de janeiro de 1929, enquanto caminhava para se encontrar com Tina, após reunião na Seção Mexicana do Socorro Vermelho Internacional (SVI) – organização de apoio a perseguidos e prisioneiros políticos, vinculada à IC. Em meio à atmosfera anticomunista de então, além das próprias divergências entre comunistas, o assassinato envolveu muitas especulações; jornais locais chegaram a acusar Tina pela morte, mas ela foi logo inocentada, após investigação policial. Mesmo diante de um esgotamento emocional e político, ela prosseguiria firmemente sua militância no partido.

No ano de 1929, Tina Modotti se envolveu intensamente com a fotografia. Na Biblioteca Nacional, fez a “Primeira exibição revolucionária do México”. Paralelamente, as perseguições anticomunistas aumentaram, impondo a clandestinidade ao PCM; as sedes do partido e do jornal El Machete foram fechadas, e vários dirigentes expulsos do país. Tina foi regularmente vigiada pela polícia até que, em fevereiro de 1930, foi deportada. O governo de Mussolini tentou sua extradição para a Itália, como subversiva, porém, por meio da ação do SVI, ela desembarcou na Alemanha – justo no momento em que se dava a ascensão do Partido Nazista e havia uma participação massiva da população em comícios de Adolf Hitler. Na Europa, dedicou-se a ações em defesa de presos políticos e realizou trabalhos clandestinos para a IC, no sentido de conter o avanço nazifascista. Pretendia regressar à Itália, no entanto, a partir de um reencontro com o italiano Vittorio Vidalli, um militante comunista que havia conhecido no México, mudou-se para Moscou (1931). Ali, suspendeu suas atividades de fotografia e dedicou-se incansavelmente ao trabalho de tradução, na sede soviética do Socorro Vermelho, para o qual também escreveu artigos.

Tina Modotti se tornou então uma importante dirigente revolucionária, comunista e internacionalista. Travou relação com a alemã Clara Zetkin (1857-1933), uma liderança socialista e feminista, e conheceu a comunista mexicana Concha Michel (1899-1990), que estava em Moscou, em 1932. Em 1936, Tina (sob o pseudônimo María Pidal) e Vidalli (sob o pseudônimo Carlos Contreras) saíram de Moscou para lutarem na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), apoiando a luta antifascista. No conflito, Tina integrou o batalhão feminino, atuando especialmente em missões secretas e em hospitais, tendo apoiado combatentes revolucionários e vítimas de massacres. Trabalhou também com o médico comunista canadense Henry Norman Bethune (1890-1939) – um dos primeiros defensores da medicina socializada (quem mais tarde contribuiria com o Exército Vermelho na China, participando da guerra sino-japonesa, a partir de 1938).

Em 1937, Tina foi nomeada pelo SVI para participar do II Congresso Internacional de Escritores para a Defesa da Cultura, ocorrido em Madrid (Espanha). O evento se deu em plena Guerra Civil, e contou com o apoio da Aliança de Intelectuais Antifascistas. Entre os participantes, que entre outros temas debateram o papel do escritor na sociedade, estavam o chileno Pablo Neruda (1904-1973), o cubano Nicolás Guillén (1902-1989), a alemã Maria Osten (1908-1942) e a espanhola Margarita Nelken Mansberger (1894-1968).

Com a derrota na Guerra Civil, Tina tornou-se, em 1939, encarregada de providenciar asilo político para refugiados. Retirou centenas de militantes ao longo da fronteira entre a França e a Espanha. Junto com Vidalli, regressou ao México (com o pseudônimo Carmen Ruiz Sánchez) e, através de suas articulações políticas, conseguiu asilo em solo mexicano para vários combatentes envolvidos no conflito. Em seu retorno, colaborou com a tradução de artigos para a Associação Antifascista Garibaldi; procurou não retomar seus contatos antigos, e trabalhava muito, embora pouco saísse da residência na qual convivia com Vidalli.

Em janeiro de 1942, Tina e Vidalli foram convidados para um jantar na casa de Hannes Meyer, arquiteto suíço comunista; ali, Tina passaria então seus últimos momentos acompanhada de prosa e vinho; Vidalli, informando ter um compromisso no jornal El Popular, havia se retirado pouco antes; Tina, de madrugada, seguiu de táxi em direção à sua casa, porém, faleceu no trajeto. As causas de sua morte são ainda incertas (se assassinato, suicídio ou saúde debilitada). Contudo, diante das especulações, o laudo médico indicou congestão visceral generalizada e falência múltipla dos órgãos – o que poderia ter sido ocasionado por ataque cardíaco (recorrente na família Modotti), ou por envenenamento por substância desconhecida.

Tina foi sepultada ao som da Internacional. Acompanhado de açucenas, militantes e dirigentes, seu funeral levou a foice e o martelo entrelaçados. Vivendo plenamente suas convicções, sua obra – política e fotográfica – é um testemunho documental das condições da classe trabalhadora mexicana e desempenha importante função na difusão dos ideais socialistas na América Latina.

2 – Contribuições ao marxismo

Tina Modotti foi sobretudo militante comunista e fotógrafa, além de jornalista, tradutora e atriz. Através de suas composições fotográficas, registrou imagens da realidade cotidiana dos trabalhadores. Integrou-se ao PCM, onde trabalhou em jornais como El Machete, e participou do SVI, em apoio aos perseguidos e prisioneiros políticos, atuando também nas brigadas de agitação do Partido Comunista Alemão e na Guerra Civil Espanhola.

Intensamente vívida, Tina Modotti não se esquivou dos desafios de seu tempo. Através do fotojornalismo, buscou convergir estética e revolução. Sua fotografia posicionou-se como instrumento ético de investigação social e de batalhas políticas. Documentou a cultura, as mazelas e as lutas sociais. Contribuiu com a memória visual de personalidades, militantes e dirigentes, bem como de ações políticas e culturais do período. Através de suas composições fotográficas, articulava objetividade e subjetividade – na busca pela emancipação humana. Produziu fotos que carregam um valor documental da realidade social vivida – a partir da luta de classes de seu tempo –, expressando em imagens uma intrínseca relação entre a arte e a política. Retratou a identidade e as lutas operárias, camponesas e indígenas do México; registrou os murais mexicanos, propagandeou a perspectiva comunista de transformação societária, e conclamou a sensibilidade como necessária à compreensão da vida social. Além disso, conferiu em seu trabalho um fundamental destaque às mulheres.

Em uma direção semelhante à do movimento muralista mexicano, inovou na fotografia, evidenciando as interfaces entre a estética de Marx e a luta revolucionária. Diego Rivera, em seu artigo “Edward Weston and Tina Modotti” (1926), afirmou que Tina, sua musa e parceira, produziu uma fotografia de “maravilhosa sensibilidade”, tanto no plano “abstrato” como “intelectual”.

Tina achava desagradável ter seu trabalho fotográfico tratado como arte; defendia que se devia produzir fotografias sem o uso de manipulações ou efeitos artificiais. Considerava a câmera como ferramenta, assim como é o pincel para o pintor. Entendia que a fotografia, em suas múltiplas funções, era um meio importante de registro do presente. Sem se aprofundar no debate sobre a fotografia ser ou não arte, ela destacou a importância de se distinguir o bom trabalho fotográfico, em que se aceitam as limitações da técnica fotográfica e se aproveitam todas as possibilidades que o meio oferece; já o mau trabalho seria aquele em que se recorre a truques para agradar a certos gostos. Trata-se de um debate que perpassa a relação entre arte e política, a partir de uma estética marxista, muito embora a autora não utilize esta terminologia. A fotografia, como produto social, pode compor processos de alienação e fetichismo, mas também pode expressar e evidenciar as contradições da vida material de um determinado momento histórico, contribuindo para as conexões e sínteses do processo de tomada de consciência emancipatória.

Tina buscava relacionar, através da fotografia, elementos da vida cotidiana à luta política, conferindo à noção de “arte” esse sentido específico. Mas, em determinado momento, sua câmera se tornou insuficiente para enfrentar a aspereza da ascensão nazifascista. Numa mudança de percurso, debruçou-se no fortalecimento do Socorro Vermelho, tornando-se sua dirigente. Criado nos anos 1920, o SVI funcionou em dois formatos: como organização de massas; e na composição de comitês, que atuavam no auxílio jurídico e material de presos e exilados políticos. Estas ações foram fundamentais para salvar e preservar a vida de inúmeros militantes que haviam se tornado perseguidos políticos – como os brasileiros Laura Brandão (1891-1942) e Octávio Brandão (1896-1980), exilados na URSS nos anos 1930 (há registros da defesa de Tina junto à Seção Soviética do SVI para reconhecê-los como exilados). Entre os dirigentes desta organização, estiveram também Clara Zetkin, e a russa Elena Stásova (1873-1966). Para além da tradução de artigos para os periódicos vinculados ao SVI, Tina também escreveu sobre temas tais como: a reforma agrária mexicana e a situação das viúvas e crianças diante do fascismo. Seus poucos artigos demarcam uma posição anti-imperialista e a perspectiva societária comunista. Realizou ainda tarefas clandestinas, que foram imprescindíveis para a consolidação do movimento comunista internacional.

Conheceu o cineasta soviético Sergei Eisenstein (1898-1948), que, por sua vez, afirmou ter sido influenciado pelas fotos de Tina e Weston (em seu filme “Que viva México!”, de 1932). Conviveu com Pablo Neruda, Frida Kahlo, Diego Rivera, Augusto César Sandino, Alexandra Kolontai (embaixadora no México, de 1925 a 1927), e com a revolucionária espanhola Isidora Dolores Ibárruri Gómez (conhecida como La Passionaria, famosa dirigente comunista).

Tina Modotti foi uma mulher comunista, internacionalista e feminista que transgrediu os costumes de sua época. Em seus relacionamentos, buscou a autonomia necessária para manter seu compromisso e convicções revolucionárias. Atuou entre a estética e a política, entre a liberdade e o comprometimento, e se definia como alguém que almejou respeitar todas as possibilidades que a existência humana carrega diante da vida.

3 – Comentário sobre a obra

A obra escrita de Tina Modotti consiste em textos esparsos, artigos publicados em revistas e jornais, além de correspondências – dentre os quais comentamos alguns de maior destaque.

Em março de 1930, escreve artigo para a revista peruana Amauta (n. 29) intitulado “La contrarrevolución mexicana”, onde denuncia a perseguição (prisões e assassinatos) de comunistas, e acusa as autoridades do país de terem perdido qualquer “pudor” em sua “submissão aos capitalistas de Wall Street”, além de criarem na opinião pública um “estado psicológico sentimental-histérico”, inventando ficções que vão de “complôs” a “planos terroristas”, mas que não passam de farsas destinadas a “agradar aos leitores da imprensa burguesa”, que aceitam “todo tipo de disparates”, confundindo “comunistas com terroristas”, e “anti-imperialistas com fabricantes de bombas destinadas a matar presidentes pela América Latina”. Pouco depois desta publicação, Tina foi exilada do país.

Sua atuação direta na organização SVI foi revelada em duas cartas à Manuel Álvarez Bravo (25 de março e 9 de julho de 1931), que podem ser lidas no portal do International Center for the Arts of the Americas at the Museum of Fine Artes (ICAA) de Houston (disp: https://icaa.mfah.org). Nesta última, comenta sobre o “suicídio” de uma conhecida em comum, a quem considera o “protótipo da classe parasitária (e portanto decadente)”: uma mulher sem “inquietudes materiais” que, por força de “inquietudes espirituais”, tornou-se “tão complicada até chegar ao patológico”; uma grande “tragédia”, mas não menor do que as daqueles que “se suicidam devido à fome”, como vinha ocorrendo nos EUA – em que os próprios “jornais burgueses” afirmavam que o suicídio “por fome” tinha se tornado um “fenômeno coletivo”. Ademais, comunica-lhe que não estava conseguindo dedicar tempo à fotografia diante do ritmo “bolchevique” de trabalho militante, e que havia se tornado impossível fazer as duas coisas, sobretudo quando ambas eram tão importantes. Com efeito, nesse período, utilizou pouquíssimas vezes a câmara, e sempre para fins bem específicos.

Como relatora das seções regionais do Secretariado del Caribe (Nova Iorque), e do Secretariado Sudamericano (Buenos Aires), ocupava-se especialmente em ler as correspondências e informes, além de jornais e materiais político-sindicais que permitissem compreender a situação político-econômica dos países, para então estabelecer pontes com o SVI, traduzindo os conteúdos em linguagem acessível, popular, para as publicações da organização. Como exemplo, podemos citar o artigo “Los niños y el Socorro Rojo”, publicado na Revista do Socorro Vermelho Alemão, em março de 1931.

Ainda neste período, quando secretária do Comitê Antifascista do Caribe, escreveu o folheto “El Socorro Rojo Internacional en los países de América del Sur y del Caribe” (1933).

No jornal “Ayuda”, publicação editada pela Seção Espanhola do SVI durante a Guerra Civil da Espanha, Tina escreveu artigos sob o pseudônimo Carmem Ruiz. No texto “En defensa de nuestros niños” (Madri, 3 mar. 1937), afirma que um dos principais problemas diante do avanço fascista era a questão da “infância” – tema que o SVI, por seu espírito humanitário, colocava como uma das principais tarefas. Afinal, após centenas de mortes, não se tratava mais de recolher as crianças dos combatentes ou evacuadas, nem de organizar creches ou entregar roupas e alimentos, pois ali já não havia local seguro. Em vista disso, aponta a necessidade de enviá-las ao estrangeiro, onde organizações antifascistas de todo o mundo ofereciam hospitalidade – a partir de comitês especiais que recebiam crianças de combatentes ou dos que caíram em defesa da causa –, até que se resolvessem os conflitos. Para isso, seria necessário realizar um amplo trabalho de propaganda e convencimento de mães e pais, para que pudessem compreender a proposta.

A correspondência de Tina a Weston é ampla, e foi recompilada em publicações como: Vita, arte e rivoluzione: lettere a Edward Weston (1922-1931) [org. Valentina Agostinis] (Milão: Feltrinelli, 1994); e Una mujer sin país: las cartas de Tina Modotti a Edward Weston y otros papeles personales [org. Antonio Saborit] (Cidade do México: Cal y Arena, 2001). Dentre as cartas contidas nas coletâneas, há uma (25 fev. 1930) em que Tina conta a seu companheiro que fora acusada de ter participação na tentativa de assassinato do presidente eleito Pascual Ortiz Rubio, o que resultou em sua deportação, após ter passado 13 dias no cárcere, sob a alegação de que seria uma “terrorista”.

As correspondências de Tina expressam com frequência seus sentimentos, seu pensamento em relação à arte, à vida, às relações e à luta política. Numa dessas cartas a Weston, datada de 1926, afirma que sempre buscou respeitar “as muitas possibilidades do ser que está em todos nós”, diante do “trágico conflito entre a vida, que muda continuamente, e a forma, que a fixa imutável”. Já em outra, do mesmo ano, escrita por ocasião do quarto aniversário da morte de Robo, ela afirma que, tendo se voltado a suas coisas antigas, decidiu que manteria apenas aquelas que tivessem a ver com a fotografia, sendo que o restante das coisas “concretas” que tanto amava seriam submetidas a uma metamorfose que as transformaria em “abstratas”, de modo que pudesse possuí-las sempre no coração.

Quanto à fotografia, esta foi a atividade a que Tina Modotti mais se dedicou em seu fazer político. Seus primeiros trabalhos fotográficos, ainda sob a influência dos traçados de Weston, foram publicados na revista El Maestro Rural (México). Sua obra visual pode ser encontrada principalmente no jornal El Machete, órgão oficial do Comitê Central do PCM, e na Revista Mexican Folkways, em que trabalhou como editora e fotógrafa.

Nesta última, publicou o manifesto “Sobre la fotografia” (Mexican Folkways, n. 4, 1929) – texto disponível no citado portal do ICAA. No ensaio, ela destaca o papel da fotografia como registro documental de uma época, afirmando que, por ser realizada no instante presente, a partir do que existe objetivamente diante da câmera, a fotografia seria um meio perspicaz para se registrar as manifestações da vida real. Entende que a sensibilidade e o conhecimento das diferentes dimensões da realidade, junto à compreensão da posição em que ocupamos no processo histórico, conferem à fotografia um valoroso lugar na produção social – a que todos devem contribuir. Inicia o manifesto observando que o emprego das palavras “arte”, ou “artístico”, com relação a seu trabalho fotográfico, despertava nela uma “impressão desagradável”, devido ao “mau uso e abuso que se fazem delas”. Se suas fotos eram consideradas diferentes das produzidas por outros fotógrafos – pondera – é porque buscava “produzir não arte, mas fotografias honradas, sem truques nem manipulação, enquanto a maioria dos fotógrafos ainda buscam os ‘efeitos artísticos’ ou a imitação de outros meios de expressão gráfica”. Acercando-se da reflexão feita por Rivera sobre o tema, considera que muitos em sua época não tinham ainda conseguido aceitar as “manifestações de nossa civilização mecânica”, colocando que, para si, o mérito da fotografia é o de ser o “meio mais eloquente e direto de registrar a época presente”. Ademais, afirma Tina, “não importa saber se a fotografia é ou não é arte”, mas cabe antes “distinguir entre a boa e a má fotografia”: por “boa” se deve entender aquela que “aceita todas as limitações inerentes à técnica fotográfica e se aproveita de todas as possibilidades e características que o meio oferece”; já por “má fotografia”, deve-se entender aquela que é realizada com “uma espécie de complexo de inferioridade”, o que não permite apreciar “o que a fotografia tem de seu, de próprio” – levando a que se recorra a “imitações”, “falsificações”. A fotografia, diz Tina, “justamente porque só pode ser produzida no presente, e baseando-se no que existe objetivamente frente a câmera”, impõe-se como “o meio mais satisfatório de registrar a vida objetiva em todas as suas manifestações”; tem portanto um grande “valor documental”, ao qual, se se junta “sensibilidade” e “compreensão” do tema abordado” – além de, sobretudo, uma clareza quanto ao “lugar” que tal imagem deve ocupar no “desenvolvimento histórico” – pode resultar em “algo digno de ocupar um posto na produção social, à qual todos devemos contribuir”.

Como se observa nestas reflexões, a concepção estética marxista de Tina Modotti é atenta tanto ao aspecto objetivo do ato de fotografar (enquanto registro da realidade), como a seu aspecto sensível (a sensibilidade necessária para se localizar o testemunho imagético no contexto da história – no todo que compõe a realidade).

Entre os anos de 1927 e 1928, Tina Modotti foi convidada para participar do projeto de criação de Escuelas Libres de Agricultura. O comunista indiano Pandurang Khankhoje (1884-1967) era o responsável pela experiência, cujo início contou com turmas em caráter “itinerante”. Tina fez uma série de fotos das pesquisas sobre a produção de milho realizadas por Khankhoje, na ocasião da construção destas escolas. Tais imagens demonstram as atividades camponesas no município de Texcoco (1927-1928), e uma assembleia camponesa em Chipiltepec, onde se estabeleceu a primeira Escuela de Agricultura Emiliano Zapata. Algumas destas fotografias são conservadas na Fototeca Nacional do México, uma produção politicamente ativa que testemunhou a organização dos camponeses, destinando-se a promover a luta social revolucionária. Sua foto “Hoz, canana y mazorca” [Espiga de milho, foice e cartucheira], de 1928, inspirou a construção do emblema destas Escolas.

Outras imagens, de meados dos anos 1920, retrataram o povo no contexto do processo de industrialização, como: “Hilos telegráficos” (1925); “Hombre cargando una viga” (1927); e “Manos de mujer lavando ropa” (1926). Ela fotografou ainda a luta político-econômica comunista, caso de: “Marcha de los trabajadores” (1926) – em que retrata camponeses marchando pela reforma agrária; “Sombrero, hoz y martillo” (1927); “Campesinos leyendo El Machete” (1928); “Mujer con bandera” (1928); a fotomontagem “La elegancia y la pobreza” (1928); e “Cantando corridos en Chiconcuac” (1928), que registra Concha Michel tocando violão para camponeses.

Tina retratou também várias personalidades da luta política de seu tempo, como Julio Mella, seu companheiro, que logo seria assassinado; abalada, ela decidiu então percorrer o Estado de Oaxaca, registrando sua cultura. Em seu regresso, fotografou mobilizações, como se vê em “Diego Rivera y Frida Kahlo en la manifestación del Primero de Mayo de 1929”. Já na Alemanha, poucas são suas fotografias conhecidas; destacamos: “Una vez más” (1930), que mostra a barriga de uma mãe grávida segurando uma criança no colo.

Enquanto atriz, Tina Modotti participou de filmes estadunidenses, como: The tiger’s coat [O casaco do tigre], de 1920 (direção de Roy Clements); e Riding with death [Cavalgando com a morte], de 1921 (direção de Jacques Jaccard).

Tina foi também retratada em vários dos murais de Diego Rivera, tendo posado para as obras “Tierra virgen” (1926), “La tierra abundante” (1926) e “Germinación” (1926-1927), entre outras. No destacado mural “En el arsenal” (1928), da Secretaria de Educação Pública (Cid. México), ela aparece pintada, junto a Frida Kahlo, distribuindo munição ao povo e olhando fixamente para Júlio Mella, com Vittorio Vidalli (1900-1983) ao lado.

4 – Bibliografia de referência

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Notas

* Ândrea Francine Batista é professora da Universidade Federal do Paraná; doutora em Serviço Social (UFRJ), mestre em Desenvolvimento Territorial na América Latina (UNESP), e licenciada em Pedagogia (UEPG). Autora de, entre outras obras: Movimento camponês e consciência de classe: a práxis organizativa da Via Campesina Internacional na América Latina (UFRJ, 2019).

* Yuri Martins-Fontes é coordenador-geral do Núcleo Práxis-USP e editor do Dicionário Marxismo na América; escritor, professor e jornalista; doutor em História Econômica (USP/CNRS), bacharel em Filosofia e em Engenharia (USP), com pós-doutorados em Ética e Política (FFLCH-USP), e História, Cultura e Trabalho (PUC-SP). Autor de, entre outras obras: Marx na América (Alameda/Fapesp, 2018) e Cantos dos Infernos (Patuá, 2021).

* Com edição de texto de Pedro Rocha Curado e Paulo Alves Junior, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário Marxismo na América, obra coletiva coordenada por essa organização; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: nucleopraxis.usp.br@gmail.com.