O marxismo de Octávio Brandão

Farmacêutico, jornalista, editor e radialista, foi dirigente político e um dos primeiros teóricos do Partido Comunista do Brasil (PCB) Por Gilberto Maringoni e Paulo Alves Junior * BRANDÃO REGO, Octávio (brasileiro; Viçosa/AL, 1896 – Rio de Janeiro/RJ, 1980) 1 – Vida e práxis política Octávio Brandão nasceu e passou seus primeiros anos em Viçosa, cidade do interior de Alagoas, núcleo de uma região produtora de açúcar dominada por oligarquias agrárias e com pouco desenvolvimento social. Segundo suas memórias, sua formação se deu no seio de uma “pequena-burguesia urbana empobrecida”, que embora adepta de ideias progressistas, era vítima do poder de grandes proprietários rurais “semifeudais”. A morte da mãe, quando Brandão tinha apenas quatro anos, o afetou muito. A partir daí viveria com um tio, em uma pequena casa tipicamente cabocla, no engenho do Barro Branco, regressando à Viçosa só quando seu pai voltou a se casar. Frequentou a Escola Silva Jardim, no ensino fundamental, na qual teria um primeiro contato com ideias evolucionistas, por meio de um professor. Em 1911, quando já morava com outro tio em Maceió – estando matriculado no Colégio Marista –, ficou órfão também de seu pai, homem de ideias republicanas e progressistas. Apesar de criado em um meio conservador católico, rompeu com a religião aos 16 anos, influenciado pela educação paterna, que lhe incutira o questionamento à hipocrisia social; este foi um marco emocional e intelectual dessa fase de sua vida na capital alagoana. Além disto, a percepção da situação de miséria da maior parte da população e o impacto das notícias da Revolta da Chibata (1910) e das greves operárias no Sudeste atraíram cada vez mais sua atenção para os graves problemas do país. Entre 1912 e 1914, residiu na capital pernambucana, onde se diplomou na Escola de Farmácia do Recife (atualmente parte da Universidade Federal de Pernambuco). Logo após a formatura, regressou a Maceió. Ali tomou contato com as principais obras da literatura universal e desenvolveu um agudo interesse científico, o que o fez se voltar para as ciências naturais. Aos 20 anos, empreendeu uma série de viagens pelo interior de seu estado para conhecer sua formação geológica e riquezas naturais. Baseado nestas pesquisas, em 1916 começou a escrever Canais e lagoas (publicado em 1919) – livro que descreve o complexo hídrico Mundaú-Manguaba e pode ser visto como uma das primeiras pesquisas ecológicas brasileiras. Sobre o tema, pronunciou também diversas conferências em Maceió, mostrando evidências da existência de petróleo na região e desde cedo observando a importância que poderia ter a prospecção petrolífera para a economia brasileira. No ano de 1918, começou a escrever para imprensa anarquista – colaborando com o Diário de Pernambuco e tendo fundado o jornal O Povo. À época, vinculou-se também a movimentos de trabalhadores urbanos e rurais, defendendo a jornada de 8 horas e a reforma agrária. Foi preso pela primeira vez em 1919. Depois de libertado, passou a ser perseguido, o que o fez partir, no mesmo ano, para o Rio de Janeiro – onde residiria até 1931, quando foi forçado a deixar o país. Na capital da República, travou contato com o mundo intelectual e político, em especial com Astrojildo Pereira (1890-1965) – que viria a ser um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil (PCB), em março de 1922. Ali, o alagoano se mostraria impressionado com as mobilizações operárias, tendo se aprofundado nos estudos sobre a Revolução Russa. Passou então a escrever nos jornais anarquistas A Plebe, A Vanguarda e na Revista do Brasil (de São Paulo, dirigida por Monteiro Lobato), colaborando ainda com o Spartacus e o Imparcial (Rio de Janeiro), além da revista alemã Ekenntnis und Befreiung [Reconhecimento e Liberação]. Com tais atividades, teve acesso à literatura marxista que chegava ao país – e vem desses tempos sua desilusão com o anarquismo e sua rápida adesão às ideias de Marx e Engels. Em 1920, passou a integrar o integrar o Grupo Comunista Brasileiro Zumbi. Casou-se no ano seguinte com a poetisa e sua companheira de lutas, Laura Fonseca da Silva. Embora não seja um dos fundadores do PCB, Octávio Brandão acompanhou seu desenvolvimento desde o início. Aderiu ao Partido, a convite de Astrojildo, em outubro de 1922. Logo se tornaria dirigente (membro da Comissão Central Executiva) e começaria a estudar metodicamente os clássicos marxistas. No período, adquiriu uma pequena farmácia, estabelecimento que viria a ser uma espécie de escritório e ponto de encontro de militantes populares. Suas pesquisas sobre a Revolução Bolchevique de Outubro resultaram no livro Rússia proletária, escrito neste mesmo ano. Em 1923, já integrando o Comitê Central do Partido, empreendeu uma ousada tarefa: traduzir para o português o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels – a partir da edição francesa revisada pelo próprio Engels. No mês de julho do ano seguinte, explodiu em São Paulo uma revolução que tinha como objetivo derrubar o governo do presidente Arthur Bernardes (1924-28) – que manteve um Estado de sítio permanente ao longo de todo o mandato. Perseguido pela repressão, Octávio Brandão viveria na ilegalidade entre 1924 e 1926, mantendo-se atento aos acontecimentos. Em uma tentativa de dar resposta às questões políticas levantadas pela insurreição, ainda em 1924 redigiu grande parte de sua mais importante obra, Agrarismo e industrialismo – elaborada com colaboração da direção do PCB –, a qual seria complementada e publicada dois anos depois sob o pseudônimo de Fritz Mayer (usado para despistar a polícia). Em 1925, Brandão foi um dos fundadores e o primeiro editor de A Classe Operária, órgão oficial do PCB. À época, ministrou também cursos de teoria política para grupos de operários, em um paciente trabalho de formação, além de fazer panfletagens e vários discursos em manifestações públicas. Em 1927, tornou-se editor-chefe do diário A Nação – que difundia as ideias comunistas entre os trabalhadores. No mesmo ano, com Astrojildo Pereira e outros dirigentes e ativistas, fundou o Bloco Operário, fachada legal do Partido (então na clandestinidade) – uma organização legal e de massas, cujo nome, em 1928, passou a ser Bloco Operário eContinuar lendo “O marxismo de Octávio Brandão”

Dictionary Marxism in America: a historical rescue of militant memories

After decades of collective work, public access is now available to a series of publications that brings back the historical memory of the first Marxists in the Americas

O marxismo de Astrojildo Pereira

Gráfico, jornalista, ensaísta e crítico literário, foi fundador e dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCB), destacando-se como divulgador do comunismo e por contribuir para a formulação de uma das primeiras interpretações marxistas da realidade brasileira Por John Kennedy Ferreira e Felipe Santos Deveza PEREIRA Duarte Silva, Astrojildo (brasileiro; Rio Bonito/RJ, 1890 – Rio de Janeiro/RJ, 1965) 1 – Vida e práxis política Astrojildo Pereira Duarte Silva nasceu em Rio dos Índios, pequeno povoado do estado do Rio de Janeiro, sendo filho de Ramiro Pereira Duarte Silva e de Isabel Neves da Silva. Seu pai, descendente de portugueses e formado em medicina, foi fazendeiro, comerciante e pequeno industrial, vindo a migrar do interior para Niterói e depois para o Rio de Janeiro. Em sua cidade natal, Astrojildo estudou inicialmente em escola pública e depois particular. Com o crescimento dos negócios da família, aos 13 anos mudou-se para Nova Friburgo (RJ), matriculando-se no tradicional Colégio Anchieta, dirigido por jesuítas. Influenciado pelo novo ambiente, nutriu o desejo de ser “frade, não padre”, mas logo se desencantou com a fé, ao considerar que seus professores católicos mentiam – e a partir desse momento rompeu com o catolicismo. Nesse colégio terminou o ensino secundário e, sem motivação para continuar os estudos formais, dedicou-se durante um tempo ao empreendimento do pai. Trabalhou como gráfico e jornalista, além de ensaísta, tornando-se um leitor apaixonado e dono de um “autodidatismo arquiatabalhoado”, como ele mesmo se descrevia. Desde cedo, dedicou-se à militância política. Com um engajamento ativo, de início apoiou a candidatura liberal de Rui Barbosa à Presidência da República (1910); mais tarde, indignado com a ação do Estado contra a Revolta da Chibata (1910), aderiu ao ideário anarquista. Em 1913, ajudou a organizar o II Congresso Operário Brasileiro. Após o evento, passou a colaborar com diversos órgãos da imprensa anarquista e sindical, e desde este momento passou a ser reconhecido como uma das principais lideranças operárias. Durante a I Guerra Mundial, Astrojildo notabilizou-se por denunciar o caráter imperialista do conflito, sustentando a neutralidade brasileira. Quando eclodiu a Revolução Russa de 1917, acompanhou as matérias reproduzidas pelas agências franco-inglesas – que chegavam à América Latina através das agências de notícias de países envolvidos na Guerra. Nos noticiários, os “maximalistas”, como foram chamados os revolucionários russos, seriam tratados como agentes da espionagem alemã, como bandidos arruaceiros e, algumas vezes, como sonhadores utópicos ou infantis. Por meio de investigações e de análise crítica, Astrojildo procurou esclarecer o que estava realmente ocorrendo na distante Rússia –governada pelo regime absolutista dos czares –, país que, desde fevereiro de 1917, parecia oscilar entre uma situação de caos, um regime liberal “de tipo ocidental” e algo novo. Em 1918, sob o pseudônimo Alex Pavel, o até então adepto do anarquismo escreveu uma série de cartas à imprensa dominante da época, em que questionava as premissas difundidas acerca do caráter da Revolução Russa e de personagens como Lênin. Ainda neste ano, com alguns camaradas anarquistas, liderou a tentativa de insurreição armada de trabalhadores no Rio de Janeiro – sendo preso por alguns meses. Foi neste processo de evolução política internacional que Lênin e os revolucionários marxistas passaram a se tornar a solução para o impasse anarquista – e Astrojildo, como muitos libertários da época, logo viria a ser um fervoroso apoiador dos bolcheviques e da nova Internacional Comunista (IC). Em março de 1919, após uma greve geral e uma tentativa frustrada de criar um soviete, Astrojildo e seu grupo resolveram aceitar a convocação feita pela recém-criada IC – e fundaram um efêmero Partido Comunista do Brasil. Os principais organizadores deste partido, além dele, foram: José Oiticica, Maria de Lourdes Nogueira, Octávio Brandão e Edgard Leuenroth. Uma interessante característica desta agremiação foi a de que seus líderes eram mais anarquistas do que propriamente comunistas. E o grupo logo se dividiu entre os que apoiavam a Revolução Russa e os que eram críticos do processo. Conforme se aguçaram as intervenções contrarrevolucionárias na Rússia, bem como as contradições entre as correntes que apoiavam a Revolução Bolchevique, Astrojildo passou a liderar os grupos favoráveis à Rússia Soviética, sobretudo por meio do jornal Spartacus – embora tenha mantido como objetivo a unidade do movimento sindical (que neste momento estava em refluxo). Em 1920, ajudou a organizar o III Congresso da Confederação Operária Brasileira (COB), buscando trazer como modelo ao movimento sindical brasileiro a linha do sindicalismo estadunidense da Industrial Workers of the World (IWW) [Trabalhadores Industriais do Mundo], que era um exemplo de frente única entre anarquistas e socialistas marxistas. Este esforço, porém, não alcançou o resultado esperado. Após a realização do III Congresso da IC e do contato que estabeleceu com um representante da Internacional, Astrojildo decidiu empenhar-se na formação de um partido comunista. Em 7 de novembro de 1921 foi criado o Grupo Comunista do Rio de Janeiro – o qual estimularia a organização de outros coletivos. Pouco depois, em 25 de março de 1922, foi fundado o Partido Comunista do Brasil (PCB), que se tornaria a Seção Brasileira da IC (sendo, na década de 1960, renomeado Partido Comunista Brasileiro, devido a questões de registro legal). Contudo, em julho deste ano, o país passou a viver sob estado de sítio – o que duraria até dezembro de 1926 – e, com isto, o novo partido foi logo lançado à ilegalidade. Com o Levante do Forte de Copacabana (julho de 1922), a insurreição dos tenentes e sua breve tomada de poder em São Paulo (1924), Astrojildo percebeu que a conjuntura da época apontava para um colapso do regime político nascido com a República. Isso levou a que ele e o Comitê Central do PCB buscassem alianças com a juventude militar rebelada – setor da pequena burguesia brasileira que representava e impulsionava certas demandas democráticas. Para tanto, Astrojildo foi até a Bolívia (em 1927) encontrar-se com Luiz Carlos Prestes e propôs ao comandante tenentista a composição de uma aliança política; na ocasião, o Cavaleiro da Esperança e outros militares insurretos leram e discutiram os materiais e livros trazidos peloContinuar lendo “O marxismo de Astrojildo Pereira”

O marxismo de Euclides da Cunha

Engenheiro, jornalista dedicado a questões sociais e escritor (autor do clássico Os sertões), foi inicialmente influenciado pelo socialismo utópico, antes de se voltar ao marxismo, sendo adepto da II Internacional Por Mario Miranda Antonio Junior * CUNHA, Euclides Rodrigues Pimenta da (brasileiro; Cantagalo/RJ, 1866 – Rio de Janeiro, 1909). 1 – Vida e práxis política Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em Santa Rita do Rio Negro, hoje Euclidelândia, distrito municipal de Cantagalo, interior do estado do Rio de Janeiro, sendo filho de Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha e de Eudóxia Moreira da Cunha. Na época, o Brasil estava envolvido na Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870). Foi um período de intensas transformações sociais, econômicas, políticas – impulsionadas, por exemplo, pelas leis “Eusébio de Queiroz”, responsável pelo fim do tráfico negreiro, e “de Terras” (1850), fundamental para a ampliação da concentração fundiária no país, impedindo com isso a democratização do acesso à terra, sobretudo, aos trabalhadores imigrantes e ex-escravizados. Com este processo, garantiu-se o controle legalizado do monopólio agrário sob o domínio de poucos, bem como a disponibilidade de mão de obra barata, muitas vezes submetida ao trabalho não-assalariado, como era comum nas grandes propriedades (com as suas levas de posseiros, meeiros e agregados). Era o Brasil dos primórdios da indústria e da urbanização, do liberalismo político, do positivismo, do naturalismo; do abolicionismo e republicanismo; da expansão das ferrovias e do café em São Paulo e Rio de Janeiro, especialmente no Oeste Paulista (que desde 1880 ultrapassou a produção do Vale do Paraíba), móvel da economia agroexportadora até a década de 1930. A infância de Euclides da Cunha foi conturbada, perdendo a mãe com apenas três anos; como o pai não acreditou que teria condições de criá-lo sozinho, passou a viver com a irmã na casa de uma tia materna, em Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Pouco tempo depois a tia faleceu, obrigando os irmãos a se mudarem para casa de outros tios, em São Fidélis, cidade do mesmo Estado. Sua formação se deu na então capital federal (Rio de Janeiro), onde estudou no Colégio Aquino, na Escola Politécnica e na Escola Militar da Praia Vermelha, dos anos 1880 até meados de 1890. Lecionaram no Colégio Aquino figuras eminentes do Império, militares, políticos e cientistas, como o marechal Francisco Carlos da Luz, visconde do Rio Branco – pai do futuro barão do Rio Branco (amigo de Euclides) – e Joaquim Gomes de Souza, bastante conhecido à época por seus notáveis conhecimentos em matemática, física e astronomia. Além disto, entre 1878 e 1885 deu-se o protagonismo dos liberais no gabinete imperial e a consagração da “Escola do Recife” – de Tobias Barreto, Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua, Farias de Brito, Graça Aranha, Araripe Júnior, a chamada “Geração de 1870”. Foi nesse contexto que Euclides frequentou, de 1885 a 1893, as escolas Militar e Politécnica, tornando-se aluno e amigo de Benjamin Constant, um dos notáveis do movimento republicano e do positivismo no Brasil. Euclides da Cunha foi um dos principais representantes do movimento republicano brasileiro, um intenso agitador nos quartéis e redações de jornais e revistas – tendo escrito com frequência, entre 1884 e 1909, em periódicos de São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1888 escreveu sobre as “questões sociais”, fazendo uma apologia da democracia como sendo a característica dos regimes políticos daquele século. Ao longo de 1889, promoveu intensa agitação na imprensa em defesa da República, aludindo ao centenário da Revolução Francesa e seus heróis. Nestes anos de mobilização republicana, escreveu com frequência em A Província de São Paulo, que viria a ser, a partir da Proclamação da República, o jornal O Estado de S. Paulo. Nessa época de agitações e transformações sociopolíticas, a “questão social” ganhou centralidade no pensamento de Euclides, que a via como resultado dos problemas fundamentais do país, agravados com a consolidação do capitalismo, tais como: as contradições surgidas com o fim da escravidão, a reivindicação por trabalho assalariado livre, o acesso à educação laica e universal, o aumento da imigração estrangeira, a industrialização e a urbanização. Para ele, a Constituição de 1891 não havia assegurado as transformações políticas, econômicas e sociais que o ascendente proletariado almejava – insatisfação que se agravou com o fechamento do Congresso por Deodoro da Fonseca (1891), o autoritarismo de Floriano Peixoto (o “marechal de Ferro”) e a repressão contra as revoltas da Armada e Federalista. Desiludido com o governo republicano (àquela época ideologicamente inspirado no positivismo), Euclides licenciou-se do Exército e passou a atuar como engenheiro civil, cumprindo estágio na Estrada de Ferro Central do Brasil, até dar baixa e abandonar a farda definitivamente em 1896. Neste tempo, os ferroviários eram uma categoria já bastante consciente, sendo organizados e combativos – sua primeira grande greve ocorreu entre 1891 e 1892, no Rio de Janeiro, tendo sido brutalmente reprimida. Isto não passou despercebido ao olhar atento do jovem Euclides, que percebeu a importância das lutas destes trabalhadores para o movimento operário brasileiro. Em 1896, Euclides foi contratado pela Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo, tendo trabalhado em Santos, Bertioga, São José do Rio Pardo e São Paulo, dentre outras cidades – experiência que o colocou em contato direto com o jovem proletariado urbano, predominantemente anarquista e socialista. Por estes anos, tentou algumas vezes ingressar como docente na recém-criada Escola Politécnica de São Paulo (fundada em 1893). Para tanto, contou com a recomendação de destacados professores da Politécnica, como Theodoro Sampaio, Garcia Redondo e Ramos de Azevedo. Entretanto, não foi bem sucedido devido a controvérsias com Francisco de Paula Souza, diretor da instituição – Euclides havia publicado em O Estado de São Paulo artigos críticos ao projeto da escola. Ainda assim, ele persistiria em suas tentativas de se tornar professor até 1904, quando, após nova recusa da instituição, partiu para a Amazônia em missão diplomática. Ainda neste período do fim do século, um acontecimento marcaria a vida de Euclides: o início do conflito no arraial de Canudos, sertão da Bahia (novembro de 1896), quando camponesesContinuar lendo “O marxismo de Euclides da Cunha”

O marxismo de Eric Williams

Historiador e professor, liderou a independência de Trinidad e Tobago – de que foi por duas décadas primeiro-ministro –, destacando-se também como um dos marxistas que desvelaram os vínculos entre a escravidão na América e o capitalismo Por Gustavo Velloso* WILLIAMS, Eric (trinitário-tobaguense; Porto Espanha, 1911 – Porto Espanha, 1981) 1 – Vida e práxis política Eric Williams nasceu na capital de Trinidad e Tobago, no início do século XX, quando o país era ainda uma colônia britânica especializada na produção de cacau, açúcar, coco e petróleo para o abastecimento do império inglês. Nesta época, o passado escravista era ainda muito vivo, e havia deixado como herança para aquela sociedade colonial diferentes formas de exploração laboral e uma massa de trabalhadores majoritariamente negra, pobre e iletrada, paga com baixos salários. A administração colonial operava de acordo com o sistema de “colônia da coroa” (“crown colony system”), o que impedia os nativos de elegerem representantes próprios para o parlamento britânico; grande parte do poder político estava concentrado nas mãos de um único homem – George Ruthven le Hunt –, representante do monarca inglês e governante local. De origem familiar pobre, Williams era filho de um funcionário público de baixo escalão, trabalhador dos correios da cidade. Por via materna, o futuro historiador herdou ascendência mestiça de raízes africanas e francesas. Sua infância esteve marcada por muitas dificuldades materiais da família, embora com períodos de alívio. Como estudante, destacou-se na escola primária e, em 1922, conseguiu uma bolsa de estudos para ingressar no prestigioso Queen’s Royal College [Colégio Real da Rainha]. Permaneceu em Porto Espanha até 1931, ano em que conquistou uma das poucas vagas reservadas aos estudantes caribenhos que desejassem se transferir para Oxford ou Cambridge, na Inglaterra. Nesses anos de estudante, conheceu o historiador, jornalista e militante socialista Cyril Lionel Robert James, cujas ideias políticas o influenciariam. Em 1932, cruzou o oceano Atlântico em companhia de James para cursar História na University of Oxford, em Londres. Ali, estabeleceu contato com um círculo radical de intelectuais anticoloniais negros, do qual participavam, entre outros, os revolucionários Kwame Nkrumah e George Padmore, além do próprio James. Depois de ter se destacado nas aulas de história moderna, Williams enveredou para o campo da pesquisa histórica, obtendo o título de doutor em 1938. Um ano depois, começou a lecionar na Howard University, em Washington (Estados Unidos), onde viveu até 1948. Durante esse período, participou ativamente de debates sobre os horizontes que se colocavam para os países caribenhos – cujos processos de independência se aproximavam. Entre 1943 e 1955, integrou a Anglo-American Caribbean Commission [Comissão Anglo-Americana para o Caribe], destinada a impulsionar o desenvolvimento econômico e político das ilhas caribenhas. Por este tempo, Williams regressou a Trinidad e Tobago (1948) e passou a liderar um movimento não violento pela independência política do país. Em 1956, após negociações com a Grã-Bretanha, Trinidad e Tobago obteve o direito de se autogovernar em assuntos internos. No mesmo ano, Williams ajudou a fundar o People’s National Movement [Movimento Nacional Popular], um partido político imbuído do objetivo de capitanear o projeto independentista. Indicado para o posto de premiê da Federação das Índias Ocidentais (1959-1962) – que, além de Trinidad e Tobago, incluía as então colônias Jamaica, Barbados e Ilhas de Sotavento –, Williams conduziu com os britânicos as negociações que resultaram na proclamação da independência de seu país, em 1962. Figura dominante do cenário político de Trinidad e Tobago, ocupou o posto de primeiro-ministro do Estado independente entre 1962 e 1981, ano de seu falecimento. Seus esforços à frente do Estado trinitário-tobagense foram particularmente fortes no campo educacional e no fomento à modernização da estrutura produtiva nacional – através da diversificação agrícola e industrial. Porém, sua condução dessa transformação ocorreu através da abertura do país ao capital estrangeiro; isso fez com que Williams adquirisse a reputação de uma liderança moderada, o que por vezes rendeu-lhe críticas do campo da esquerda (além do afastamento definitivo de C. L. R. James). Um dos episódios mais representativos da gravidade das tensões entre Williams e uma ala radical dos setores socialistas de Trinidad e Tobago ocorreu a partir de 1970, quando uma onda de protestos contra os altos índices de desemprego e a presença de empresas estrangeiras no país, liderada pelo movimento Black Power [Poder Negro], resultou em uma drástica escalada de violência. Embora o líder do país tenha, a princípio, se manifestado favoravelmente aos militantes, sua sinalização de apoio foi incapaz de conter os protestos. Depois que uma greve geral foi proclamada – e uma ala do Exército aderiu ao movimento, começando a defender a renúncia do primeiro-ministro –, Williams decretou estado de emergência (suspenso por ele mesmo em 1972), e promoveu uma repressão contra os manifestantes, chegando a solicitar a intervenção dos EUA para acalmar a situação (o que não chegou a se concretizar). Por sua liderança no processo de emancipação política de seu país natal, por sua produção como intelectual e atuação como estadista Williams é considerado um dos indivíduos mais influentes da história de Trinidad e Tobago, sendo tido como um “pai da nação”. Obteve muitas honrarias nacionais e internacionais, tanto por seus esforços de aproximação bilateral com diversos países da periferia do sistema capitalista, como pelo pragmatismo de seu governo – expresso na cooperação com países do bloco capitalista durante a Guerra Fria. Morreu em sua casa, dormindo, aos 69 anos, em março de 1981. 2 – Contribuições ao marxismo Eric Williams não teve um compromisso, por assim dizer, “doutrinário” com o marxismo. Nunca se preocupou em se vincular a tal ou qual corrente marxista, em submeter suas ideias à prova de algum conceito ou categoria específicos do materialismo histórico, ou mesmo em pautar a sua produção escrita em função daquilo que pode ou não ser encontrado nos textos clássicos do marxismo. Assemelha-se aqui a C. L. R. James, seu antigo tutor, que não sobrepôs aos processos históricos reais – por ele observados –, formulações teóricas produzidas em contextos distintos (nem as de Trótski, que o influenciou, nem de qualquerContinuar lendo “O marxismo de Eric Williams”

O marxismo de Carlos Baliño

Operário, autodidata, jornalista, tradutor e editor militante, foi fundador do Partido Revolucionario Cubano (com José Martí) e do primeiro Partido Comunista de Cuba (com Julio Mella), sendo um dos precursores do marxismo na América Por Pablo Guadarrama González * [Tradução de Yuri Martins-Fontes e Lil Bidart] BALIÑO López, Carlos Benigno (cubano; Guanajay/Cuba, 1848 – Havana, 1926) 1 – Vida e práxis política Carlos Baliño passou sua infância em Guanajay, bastante identificado com as concepções de seu pai, um arquiteto e engenheiro perseguido por suas ideias independentistas. Em 1865, ingressou na Escuela Preparatoria Profesoral de Havana. Já naquela época, publicava versos e artigos em defesa da independência cubana, em jornais de Pinar del Río (o estado mais ocidental de Cuba). Em 1868, começou a estudar arquitetura e ingressou na Escuela Profesional de Dibujo, Pintura, Escultura y Grabado de San Alejandro (Havana), a qual abandonou devido à precária situação econômica de sua família. Devido ao acirramento da repressão política em seu país, em 1869, Baliño emigrou para os Estados Unidos da América (EUA), tendo inicialmente trabalhado em fábricas de tabaco na Flórida. No ano seguinte, decidiu se mudar para Nova Orleans, onde entraria em contato com as ideias marxistas por meio da organização sindical Noble and Holy Order of the Knights of Labour [Ordem Nobre e Sagrada dos Cavalheiros do Trabalho] e, mais tarde, do Socialist Labor Party [Partido Socialista do Trabalho], este último influenciado por Lasalle. Em 1892, Baliño apoiou José Martí na criação do Liceo Cubano de Cayo Hueso (nos EUA) e, sobretudo, na fundação do Partido Revolucionario Cubano – com vistas a alcançar a independência de Cuba e de Porto Rico. A partir de 1893, presidiu o Club de Emigrados Revolucionários de Thomasville; em 1894, declarou-se adepto do socialismo. Entre 1895 e 1897, fez numerosos discursos pela independência em muitas cidades estadunidenses; e publicou artigos no periódico La nueva república, em Tampa (Flórida), denunciando as ameaças imperialistas a Cuba. Em 1897, passou a viver em Jacksonville, onde traduziria vários livros críticos à política estadunidense, além de dar palestras sobre o socialismo a imigrantes cubanos. Após a intervenção dos EUA na guerra de independência cubana, Baliño em 1902 regressou a Cuba, passando a contribuir com o diário El mundo e com o jornal operário El proletario; por este tempo apoiou também a greve que ficou conhecida como Huelga de los Aprendices. Em 1903, fundou o Club de Propaganda Socialista de la Isla de Cuba – com o intuito de difundir as ideias marxistas. Um ano mais tarde, começou a colaborar com La voz obrera, órgão do Partido Obrero (PO) – agremiação que reivindicava a adoção do programa máximo da II Internacional. Baliño escreveu também as Bases fundamentales deste partido, nas quais propôs a socialização dos meios de produção, a conquista do poder político pelos trabalhadores e a luta por uma sociedade sem classes. Em 1905, publicou o folheto Verdades socialistas, no qual expunha sua concepção fundamentalmente marxista. No ano seguinte, foi eleito para a direção do agora Partido Obrero Socialista (POS), como passou a se denominar o PO; participou das celebrações do Primeiro de Maio em Matanzas e visitou outras cidades cubanas, incluindo Manzanillo (onde conheceu o socialista Agustín Martinillo Martín Veloz), em busca de apoio para a greve de la Moneda. Em 1906, participou da fundação do Partido Socialista de Cuba (PSC), oriundo da fusão do POS e da Agrupación Socialista Internacional, que também ajudara a criar – sendo eleito membro de seu Comitê Central. Em 1909, em polêmica com a Agrupación Socialista de la Habana, denunciou seu favorecimento aos trabalhadores imigrantes, a discriminação contra cubanos e o caráter reformista de seus objetivos. Em 1911, apoiou a greve dos trabalhadores da rede de esgotos da capital (Huelga del Alcantarillado). Quando a Revolução de Fevereiro de 1917 triunfou na Rússia, Baliño escreveu “En marcha hacia la vida y la liberdad”, no qual enfatizava o significado histórico do acontecimento; e, a partir de 1918, produziu vários artigos em apoio ao primeiro Estado operário e camponês. Em 1919, entrou para a Asociación Nacional de Emigrados Revolucionarios Cubanos. Dois anos depois, traduziu o livro de Scott Nearing, The American empire, do qual também elaborou o prólogo – em que reafirmou suas ideias anti-imperialistas. Em 1922, conseguiu que a Agrupación Socialista de la Habana criticasse o que considerava uma traição da II Internacional ao socialismo e aderisse à III Internacional; dirigiu a revista Espartaco, que difundia ideias socialistas, e colaborou com várias publicações de trabalhadores, entre elas o Boletín del torcedor. Em 1923, fundou a Agrupación Comunista de la Habana e, no ano seguinte, o jornal Lucha de clases, no qual eram divulgadas as ideias marxistas, especialmente as de Lênin. Por esses anos, começou a colaborar com Julio Antonio Mella na revista Juventud; em 1925, participaria com ele tanto da fundação da Sección Cubana de la Liga Antiimperialista, como do primeiro Partido Comunista de Cuba – de cujo Comitê Central foi eleito membro. No dia 18 de junho de 1926, morreu em Havana, em um momento no qual a ditadura de Gerardo Machado intensificava a repressão contra o movimento operário e comunista. 2 – Contribuições ao marxismo O pensamento político de Baliño, em seus primórdios, inclinava-se para as teses socialistas da II Internacional; mais tarde, porém, ele passaria a se identificar com as posições comunistas de Lênin e da III Internacional. O fato de o cubano ter entrado em contato com ideias socialistas e marxistas primeiramente nos Estados Unidos, no último terço do século XIX, fez com que sua formação filosófica e ideológica fosse permeada pelas obras sobre tais temas que então circulavam neste país – fundamentalmente em inglês. Em suas reflexões políticas dessa etapa inicial, caracterizada pelo reformismo, prevaleceu uma perspectiva histórica teleológica – como se deu também com outros socialistas latino-americanos –, segundo a qual a superação do capitalismo ocorreria inexoravelmente, de tal maneira que a atividade revolucionária prática não seria indispensável. Mas o marxista não permaneceu atado a esta concepção fatalista. E se suas primeiras ideias eram mais afins comContinuar lendo “O marxismo de Carlos Baliño”

O marxismo de Tina Modotti

Fotógrafa, jornalista, tradutora e atriz, buscou convergir estética e ética revolucionária; foi militante comunista e feminista, atuando pelo Socorro Vermelho (da Internacional Comunista), no México e em outros países Por Ândrea Francine Batista e Yuri Martins-Fontes * TINA MODOTTI; Modotti Mondini, Assunta Adelaide Luigia (ítalo-estadunidense-mexicana, Údine/Itália, 1896 – Cidade do México, 1942) 1 – Vida e práxis política Assunta Adelaide Luigia Modotti Mondini, ou Tina Modotti como ficou conhecida, nasceu numa família de operários italianos. Sua condição de vida exigiu que desde cedo trabalhasse com a mãe, Assunta Mondini Modotti, como costureira em uma fábrica. Seu pai, Giuseppe Saltarini Modotti chegou a trabalhar como fabricante de bicicletas de bambu numa pequena cidade da Áustria, mas em 1906 migrou para os Estados Unidos, em busca de trabalho, enquanto a família permaneceu na Itália. Ainda criança, Tina teve proximidade com as lutas sociais: seu padrinho de batismo, Demétrio Canal, foi integrante do círculo socialista de Udine; e seu pai, conforme ela afirma, foi um “socialista” e “firme defensor das causas sindicais”, levando-a certa vez em uma mobilização do dia 1º de maio. Conheceu a fotografia com seu tio Pietro Modotti, que possuía um pequeno estúdio, frequentemente visitado por ela. Com 16 anos de idade, em 1913, viajou ao encontro do pai, que vivia em São Francisco (EUA); desembarcou no país, justamente em um período no qual crescia a hostilidade à migração italiana – declarando-se estudante e sem vínculos com o movimento anarquista. Giuseppe assumiu o nome de Joseph, e trabalhou em sociedade num estúdio fotográfico, enquanto Tina e sua irmã Mercedez faziam serviços de costura. Encantada pela arte, Tina passou a frequentar teatros e exposições. Foi assim que, em 1915, estabeleceu relação com o pintor e poeta Roubaix de L’Abrie Richey – conhecido como Robo –, com quem se casaria. Mudaram-se para Los Angeles, onde atuou como atriz em peças teatrais, óperas e cinema; sua estreia na indústria cinematográfica se deu no filme The tiger’s coat. Com o passar dos anos e a movimentada vida artística, sua relação com Robo entrou em crise. Foi quando conheceu o fotógrafo Edward Weston, com quem aprenderia a arte fotográfica, iniciando assim sua carreira nesta área. Tina e Weston construiriam uma estreita e duradoura relação, tanto amorosa como de trabalho. Em 1921, Robo, a convite do Ministério de Educação do México, mudou-se para este país, levando trabalhos de Tina para montar uma exposição. Em fevereiro de 1922, ela se encontraria com Robo, mas recebeu a notícia de sua morte por varíola; empenhou-se, então, em concluir a mostra iniciada por ele – na Academia Nacional de Belas Artes, na Cidade do México. Em março do mesmo ano, seu pai faleceu, forçando-a a regressar aos EUA. Pouco depois, em 1923, Tina e Weston decidiram deixar os Estados Unidos, rumo ao México, animados com as possibilidades de encontrar aí um ambiente mais favorável para desenvolver sua criatividade artística e, inclusive, sua relação afetiva. Estabelecidos na capital do país, passaram a frequentar círculos de artistas socialistas, tendo logo conhecido o pintor muralista Diego Rivera (1886-1957). Em 1924, Tina posou para Weston, em um ensaio fotográfico de nudez – cujas imagens, mais tarde, seriam usadas por Rivera em alegorias de suas monumentais pinturas (no edifício central da Secretaría de Educación Pública, Cidade do México). Por esse tempo, Tina começou a trabalhar em projetos fotográficos, junto ao mexicano Manuel Álvarez Bravo (1902-2002), além de contribuir com as campanhas de solidariedade construídas pela Internacional Comunista (IC) – em que atuou especialmente contra a condenação de Nicola Sacco e Bartolomé Vanzetti (anarquistas italianos executados na cadeira elétrica, nos EUA), e no Comitê em Defesa da Nicarágua (contra a invasão estadunidense). Em 1927, Weston decidiu retornar definitivamente aos EUA; Tina permaneceu no México. Nesse mesmo ano, filiou-se definitivamente ao Partido Comunista Mexicano (PCM), colaborando com fotos e traduções para seu jornal El Machete. Considerou a atividade política com grande seriedade e consciência de suas responsabilidades. Engajada na luta revolucionária, sua fotografia tomou uma perspectiva de classe, ao documentar a vida cotidiana de trabalhadores, as lutas camponesas e mobilizações sociais. Tornou-se a principal fotógrafa do Movimento Muralista Mexicano, documentando obras de seus principais representantes – e também militantes socialistas: Diego Rivera (quem, por sua vez, a retrataria em seus murais), José Clemente Orozco (1883-1949) e Xavier Guerrero (1896-1974). Em sua casa, faziam reuniões informais para discutir o papel da arte e da literatura no processo revolucionário. Foi neste contexto que, em 1928, conheceu seu futuro companheiro Júlio Mella (1903-1929), liderança do Partido Comunista de Cuba, que se encontrava exilado no México; a relação duraria até o assassinato do marxista, no ano seguinte, por agentes do ditador cubano Gerardo Machado. Em meio às tensões políticas que caracterizaram o período, Mella foi morto em uma noite de janeiro de 1929, enquanto caminhava para se encontrar com Tina, após reunião na Seção Mexicana do Socorro Vermelho Internacional (SVI) – organização de apoio a perseguidos e prisioneiros políticos, vinculada à IC. Em meio à atmosfera anticomunista de então, além das próprias divergências entre comunistas, o assassinato envolveu muitas especulações; jornais locais chegaram a acusar Tina pela morte, mas ela foi logo inocentada, após investigação policial. Mesmo diante de um esgotamento emocional e político, ela prosseguiria firmemente sua militância no partido. No ano de 1929, Tina Modotti se envolveu intensamente com a fotografia. Na Biblioteca Nacional, fez a “Primeira exibição revolucionária do México”. Paralelamente, as perseguições anticomunistas aumentaram, impondo a clandestinidade ao PCM; as sedes do partido e do jornal El Machete foram fechadas, e vários dirigentes expulsos do país. Tina foi regularmente vigiada pela polícia até que, em fevereiro de 1930, foi deportada. O governo de Mussolini tentou sua extradição para a Itália, como subversiva, porém, por meio da ação do SVI, ela desembarcou na Alemanha – justo no momento em que se dava a ascensão do Partido Nazista e havia uma participação massiva da população em comícios de Adolf Hitler. Na Europa, dedicou-se a ações em defesa de presos políticos e realizou trabalhos clandestinos para a IC, noContinuar lendo “O marxismo de Tina Modotti”

O marxismo de Manuel Mora Valverde

Grande orador, advogado e fundador do Partido Comunista Costarricense – pelo qual foi deputado –, compreende a revolução como um processo de transformações institucionais a serem conduzidas com base na realidade dos trabalhadores Por Abel Cassol * MORA Valverde, Manuel (costarriquenho; São José, 1909 – São José, 1994) 1 – Vida e práxis política Manuel Mora Valverde é um dos principais lutadores sociais e pensadores políticos costarriquenhos do século XX. Foi uma referência para a formação política comunista caribenha e um destacado advogado. Nascido em uma família de classe média – ilustrada e empobrecida –, e primogênito de doze irmãos, recebeu desde cedo a influência do pai – o mestre-de-obras e dirigente operário José Rafael Mora Zuñiga –, tendo contato com atividades políticas e lutas sociais dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, herdou da mãe, Lydia Valverde, o espírito acadêmico e o interesse pelo conhecimento do mundo e das pessoas, ambos traços marcantes de sua personalidade ao longo da vida.  Ainda criança teve que enfrentar, acompanhado da família, o exílio de seu pai na Nicarágua, após a casa em que residia ser alvo de um atentado; naquela época, a Costa Rica era governada por Alfredo Gonzáles Flores (1914-1917), um amigo do pai, que acabou sendo deposto por um golpe militar. No exílio, Manuel vê o progenitor organizar operários em grupos armados, de resistência e combate, contra o regime ditatorial imposto. Outro fato marcante do período é a morte de duas de suas irmãs, em virtude da falta de recursos familiares para tratamento médico. Esses eventos despertarão no jovem Mora um senso de justiça e igualdade que perdurará por toda sua trajetória política, acadêmica e intelectual. Fez seus estudos primários na Escola Juan Rudín, e os secundários no Liceu de Costa Rica, ambiente que fomentou personalidades – como Mario Echandi Jiménez (futuro presidente entre 1958 e 1962), de quem foi colega. Obteve tanto êxito na formação secundária que, após finalizá-la, o Ministério da Educação lhe ofereceu uma bolsa para que estudasse Matemática na França, convite por ele recusado. Iniciou sua atividade política com apenas 15 anos, quando começou a participar de reuniões da Liga Anti-Imperialista da Costa Rica, vinculada à Internacional Comunista e braço local da Liga Anti-Imperialista das Américas, coletivo formado à época por destacados intelectuais e ativistas nacionais, tais como Carmen Lyra, Carlos Luís Sáenz, Rómulo Betancourt e outros. Tais influências fizeram com que o jovem Mora participasse de associações antifascistas e de coletivos progressistas, tais como a Associação Revolucionária de Cultura Operária (ARCO), na qual ingressa em 1929. Esse processo de formação política e de luta social na juventude culminará com sua relevante participação na fundação, junto a um grupo de operários e estudantes, do Partido Comunista Costarricense (PCC), em 1931. Por este tempo, ingressa na Escola Nacional de Direito, instituição na qual obtém o título de bacharel, em 1940, iniciando sua carreira profissional como advogado. Em 1934, o recém-criado Partido Comunista organizou e mobilizou cerca de 10 mil trabalhadores rurais da região atlântica do país em torno da luta por melhores condições de trabalho na produção bananeira. Esse episódio, historicamente conhecido como Huelga bananera [Greve bananeira], é considerado a primeira ação coletiva proletária, na Costa Rica, contra uma empresa estadunidense – a famosa United Fruit. Nas eleições desse mesmo ano, Mora, ainda estudante de Direito e com só 25 anos, foi eleito um dos primeiros deputados comunistas do país, cargo para o qual será reeleito até 1948, quando eclode a Guerra Civil (que duraria de março a abril deste ano). Nesse período, ele sobressaiu como um excepcional orador, sempre pautando seus discursos e ações pela defesa dos trabalhadores, em especial os desempregados e pobres, e denunciando os privilégios da elite agrária nacional e suas relações com o imperialismo. Foi também responsável pela organização de quatro periódicos revolucionários nacionais, voltados ao fortalecimento da educação popular, à difusão dos ideais comunistas e à mobilização social das massas: La Revolución (1929-1931), Trabajo (1931-1948), Adelante (1953-1961), e Libertad (1961-1993). Em 1940, com o avanço do nazismo na Europa, Mora foi a principal figura da estratégia de ampliação de alianças, desenvolvida pelo Partido Comunista, com vistas a garantir a defesa das liberdades democráticas e dos interesses nacionais frente ao imperialismo. No plano local, a pressão por reformas sociais e econômicas – exercida por movimentos organizados pelos comunistas, tais como o Comité Sindical de Enlace e a Unión Nacional Campesina – também repercutirá na consolidação de tais alianças. Esse processo envolverá um acordo entre comunistas, setores progressistas da Igreja Católica e o governo de Calderón Guardia (1940-1944), resultando na modernização da institucionalidade estatal e na democratização das leis nacionais; uma espécie de “revolução jurídica sem sangue”, que promoverá a incorporação de garantias sociais na Carta Magna, a promulgação do Código de Trabalho Nacional, e criará a Caixa Nacional de Seguro Social. Um dos aspectos mais destacados dessas alianças foi a mudança de nome do Partido Comunista, que passa a se chamar Vanguarda Popular, com o objetivo de incorporar aos seus quadros cidadãos e políticos vinculados à Igreja Católica – os quais rejeitavam a denominação “comunista”, ainda que partilhassem de muitas de suas ideias. Em 1948, o não reconhecimento das eleições nacionais, por parte das elites tradicionais costarriquenhas, resultará no conflito referido – a Guerra Civil do país –, o que provocará o exílio de Mora no México (até 1950). Todavia, mesmo exilado, o marxista terá papel central no armistício (acordado ainda em 1948), sendo um dos negociadores do Pacto de Ochomogo, assinado em território costarriquenho (17 de abril), pelo próprio Mora e José Figueres Ferrer (líder do conservador Ejército de Liberación Nacional), sob o testemunho do padre Benjamin Nuñez Vargas. Apesar de tal acordo ter representado a manutenção das conquistas sociais alcançadas, ele não será cumprido pela junta de governo estabelecida, dominada pelas classes dominantes; assim, na Constituição de 1949, o Partido Comunista será posto na ilegalidade – gesto que resultará em perseguições, prisões e assassinatos de líderes socialistas, operários e camponeses. Somente em 1975, o PCC voltará à legalidade. Nos anos 1980, ManuelContinuar lendo “O marxismo de Manuel Mora Valverde”

O marxismo de Blas Roca

Autodidata, foi dirigente do primeiro e do atual Partido Comunista de Cuba, destacando-se como educador e divulgador do marxismo – pensamento que concebia como um guia a ser aplicado criativamente, e que buscou unir com as ideias de José Martí Por Lucilo Batlle Reyes* [Tradução de Yuri Martins-Fontes e Felipe Deveza] [PDF] BLAS ROCA; Wilfredo Calderío, Francisco (cubano; Manzanillo/Cuba, 1908 – Havana,  1987) 1 – Vida e práxis política Francisco Wilfredo Calderío López, conhecido como Blas Roca Calderío, nasceu em uma família de trabalhadores pobres e com tradição na luta pela independência cubana, sendo o mais velho de nove irmãos. Levou o sobrenome de sua mãe devido às normas da época. Na escola fundamental, mal alcançou a quarta série; ainda criança, teve que trabalhar em uma grande variedade de atividades para ajudar a sustentar sua casa. Sofreu forte opressão da sociedade burguesa-latifundiária e dependente de sua época, pois era pobre e mestiço – o que contribuiu para forjar seu espírito de rebelião contra a injustiça e a opressão. Com a ajuda de seu professor Ernesto Ramis, ainda bem moço, Wilfredo Calderío fez um curso de magistério, habilitando-se para lecionar na educação infantil; embora gostasse da profissão – que exerceu por dois anos (1924-1926) –, foi forçado a deixá-la, por não se submeter a manobras políticas. Assim, seguindo a tradição familiar, tornou-se sapateiro, e foi a partir daí que se ligaria para sempre às lutas da classe trabalhadora, unindo-se ao movimento sindical e travando contato com a literatura marxista. Em 1929, entrou no pioneiro Partido Comunista de Cuba (PCC), passando a dirigir o Sindicato dos Sapateiros de sua cidade; no ano seguinte, assumiu o cargo de secretário-geral da Federación Obrera de Manzanillo (FOM) e, ao mesmo tempo, secretário-local do partido. Nesta época sofreu sua primeira prisão política, no Castillo del Príncipe, em Havana, durante três meses. Em 1931, foi eleito membro do Comitê Central do PCC e, em 1932, preso pela segunda vez. Ao sair da prisão, no ano seguinte, preparou a greve geral em Manzanillo – contribuindo à mobilização que pôs fim à ditadura de Gerardo Machado. Já em 1933, participou do V Plenário do Comitê Central do PCC; neste evento, usou o pseudônimo Julio Martínez, mas logo, a pedido de Rubén Martínez Villena, adotou o pseudônimo Blas Roca – o qual, em 1939, quando foram convocadas as eleições para a Assembleia Constituinte, oficializou como seu verdadeiro nome. Ao retornar a Manzanillo, fundou o soviete de Mabay, o primeiro de Cuba. Pouco tempo depois, o partido o transferiu para Havana, incorporando-o como membro da Executiva Política (Birô) do Comitê Central. No fim de 1933, foi provisoriamente nomeado secretário-geral, cargo ratificado em 1934 (no II Congresso do Partido), no qual permaneceu até 1961, quando o Partido Socialista Popular (nome que o PCC passara a adotar em 1944) decidiu se dissolver para formar, juntamente com o Movimiento 26 de Julio e o Directorio Revolucionario 13 de Marzo, uma organização única dos revolucionários cubanos: as Organizaciones Revolucionarias Integradas (sob a liderança de Fidel Castro). Em agosto de 1934, Blas Roca fez sua primeira viagem à União Soviética para participar da reunião preparatória do VII Congresso da Internacional Comunista; um ano depois, chefiou a delegação do PCC em Moscou, sendo eleito membro de seu Comitê Executivo para a América Latina. Como tal, deu valiosa colaboração aos partidos operários e comunistas latino-americanos: caso de sua visita ao Brasil, durante a qual pôde encontrar Luiz Carlos Prestes na prisão, conversar com ele e ajudar a romper o isolamento em que fora mantido; e ainda, da atenção que deu ao Partido Comunista Mexicano, quando este atravessava uma crise de sua direção. Em 1940, presidiu a delegação do Partido Unión Revolucionaria Comunista (PURC), na Assembleia Constituinte. Desde então, até o golpe de Estado de Fulgência Batista, em 1952, foi membro da Câmara dos Deputados. Blas Roca forjou sua sólida cultura de maneira autodidata; lia de tudo. Em sua infância, entrou em contato com variadas obras, desde as de história cubana, às da literatura universal – como Os Miseráveis, Dom Quixote, entre outras disponíveis na biblioteca familiar. Isto alimentou seu pensamento com ideais democráticos e de justiça social, cujo núcleo foi o pensamento de José Martí. Mais tarde, quando começou a participar das lutas proletárias, entrou em contato com a literatura marxista. Leu então O ABC do Comunismo de Bukharin, O Estado e a Revolução de Lenin e A Crítica da Economia Política de Marx, que foram seguidos pelo Manifesto do Partido Comunista e pelo Capital, dentre outras obras clássicas do marxismo (à medida que chegavam em Cuba). Foi, enfim, uma síntese do intelectual revolucionário orgânico cubano do século XX, que articulou a cubanidade, a ética, o latino-americanismo e o anti-imperialismo de Martí, com a universalidade do marxismo-leninismo. A chegada de Blas Roca à alta direção do primeiro partido dos comunistas cubanos marca uma etapa qualitativamente superior no processo de amadurecimento marxista-leninista desta agremiação – enquanto instrumento político de vanguarda da revolução cubana. A experiência organizacional do marxista – nascida de sua militância de base, de estudos teóricos permanentes e de seu trabalho para unificar o partido –, juntamente com seu esforço e dedicação, o convenceu da necessidade de repensar a estratégia e as táticas do partido: como uma ciência da liderança da luta de classes dos trabalhadores, nas condições específicas dos países coloniais e dependentes. Assim, se iniciaria uma radical mudança tático-estratégica na ação partidária – centrada na luta pela legalidade, aliança com setores progressistas sem perda dos princípios de classe, propaganda revolucionária e busca por hegemonia. Após a vitória revolucionária de janeiro de 1959, na primeira plenária do PSP (fevereiro de 1959), Roca orientou o trabalho de seu partido no sentido de “defender a Revolução e fazê-la avançar”. Mais tarde, presidiu a comissão responsável por elaborar o projeto de Constituição da República – aprovada por referendo popular em 1976. Foi membro do Comitê Central do novo PCC desde sua fundação (1965), até falecer (1987), sendo enterrado com honras de general morto em guerra. “Deixou de existirContinuar lendo “O marxismo de Blas Roca”

O marxismo de Liborio Justo

Político, escritor, viajante, foi um dos introdutores do trotskismo na Argentina, aderiu ao movimento reformista, criticou a estrutura latifundiária e defendeu a luta dos povos originários e a integração continental Por Cristina Mateu * [Tradução de Yuri Martins-Fontes e Carlos Serrano] [PDF] JUSTO, Liborio; “Quebracho”; “Lobodón Garra” (argentino; Buenos Aires, 1902 – Buenos Aires, 2003) 1 – Vida e práxis política Liborio Justo nasceu no seio da oligarquia argentina, na virada do século XX. Em precoce autobiografia (Prontuario, 1940), apresenta as raízes, os enredos e vínculos políticos que marcaram sua vida, descrevendo como gerações de sua família estiveram ligadas a processos e a personagens da história nacional. Um de seus bisavós chegou à Argentina em 1829, nos tempos da guerra entre Unitários e Federais (entre 1820 e 1853), tornando-se proprietário de terras. Seu avô paterno, natural de Corrientes, foi deputado, poeta, historiador, maçom, autor do primeiro Código Rural correntino e, brevemente, governador desta província (1871). Seu avô materno, filho de espanhóis, integrou o Corpo de Caçadores, como encarregado da luta contra os indígenas araucanos na fronteira Sul, tendo posteriormente participado da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, em 1865. Seus pais pertenciam a antigas famílias de proprietários de terras “decadentes”, mas orgulhosas de sua posição social e desejosas de recuperá-la. Seu pai era capitão do exército, motivo pelo qual a família veio a se instalar nas proximidades de Campo de Mayo (zona militar próxima à capital federal) – período que ele recordaria como anos de isolamento social. O jovem Justo viveu ainda sob excessivos cuidados de familiares e empregados, em uma atmosfera de forte sentimento religioso, que o sufocava. Em 1911, entrou no colégio La Salle, em Buenos Aires – tendo detestado tanto a escola como a cidade. Seu interesse pela literatura e suas atitudes extravagantes foram sua resposta a uma educação que considerava “livresca e indigesta”, afrontando os privilégios sociais de um ambiente aristocrático e religioso que rejeitava. Suas preocupações recaíam sobre a origem da vida, do mundo, o destino do homem e seu próprio destino, as expressões americanistas que descobria – rejeitando as inclinações europeístas de sua família. Nessa época, dedicou-se com seriedade à leitura de autores russos, como Dostoiévski, e de latino-americanos, como Horacio Quiroga, além de participar de competições esportivas. O conhecimento escasso e confuso do jovem Justo sobre a situação mundial, na época de início da I Guerra Mundial, o levou a admirar a força da Alemanha e a desconhecer os acontecimentos sociais que abalavam a Rússia czarista. Em 1918, entrou na faculdade de Medicina, impelido pela família. Estes foram os tempos da luta estudantil pela Reforma Universitária, com a ocupação da Universidad Nacional de Córdoba, e da intensificação das lutas operárias que explodiriam na greve insurrecional conhecida como Semana Trágica. A agitação universitária e a confraternização com jovens de diferentes setores sociais abriram nova perspectiva para suas preocupações e buscas. Foi candidato a delegado, o que lhe permitiu estreitar laços com estudantes de direita e de esquerda. Durante este tempo, dedicou-se à fotografia e escreveu seus primeiros artigos – sobre questões universitárias. Avançou nos estudos de Medicina, continuando com sua militância junto ao centro acadêmico; tornou-se assistente de vacinação e ajudante de laboratório. A agitação universitária da Reforma, que propunha a destruição da velha universidade e a construção de um mundo novo, o aproximou da chamada Nueva Generación – que questionou a I Guerra e saudou a Revolução Socialista na Rússia. Em meio ao movimento estudantil, viajou com seu pai ao Chile, aproximando-se das pegadas indígenas do Caminho Inca e se comovendo com a imponente paisagem montanhosa do Aconcágua e da Patagônia. Esta foi uma das vezes em que se afastou da Faculdade, pela qual não se interessava. Apesar da abertura a novos horizontes políticos e sociais, entre 1921 e 1924 ele permaneceu preso a um ambiente social que desprezava. Os sentimentos contraditórios gerados por sua condição de intelectual burguês o faziam agir de maneira frívola, embora suas reflexões se fortalecessem por meio da leitura de escritores como Jack London, Kipling, Joseph Conrad (interessando-se pela cultura anglo-saxônica e pela arte renascentista italiana). O retorno ao curso de Medicina o colocou novamente em contato com a Nueva Generación e o movimento reformista – em cujos debates se denunciava a expansão imperialista dos Estados Unidos sobre o México e a América Central. Isto o levaria a estudar a história da América do Sul e começar a considerar a possibilidade de uma revolução continental como solução para os problemas sociais. A nomeação de seu pai como ministro da guerra, em 1922, fez com que este jovem rebelde se retraísse. Seu refúgio foi o estudo da história da Argentina e da América Latina, cujos países estavam submetidos aos interesses expansionistas dos EUA e de sua Doutrina Monroe. Em 1924, por ocasião do centenário da Batalha de Ayacucho, viajou com seu pai ao Peru, junto à delegação oficial, participando de opulentas celebrações. Neste país, constatou a miséria e a opressão das massas indígenas e mestiças, comprovando a má condição imposta pelo domínio colonial e imperialista a esses territórios – que haviam sido o centro do grande Império Inca e onde ainda permaneciam vestígios dos antigos ayllus originários (forma de organização social comunitária). Em 1925, zarpou do porto de La Plata para a Terra do Fogo, percorrendo as províncias de Santa Cruz e Chubut, visitando o campo petrolífero da empresa estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales. Partiu novamente para o Norte da Argentina, cruzando Entre Ríos, Corrientes e Misiones. Neste novo itinerário, escutou a língua guarani e descobriu a natureza exuberante da selva. Seguindo pelo Alto Paraná até as cataratas do Iguaçu, conheceu os mensús – trabalhadores contratados para serviços em moinhos e plantações de erva-mate, tratados como “verdadeiro gado humano” –, ouvindo relatos de exploração e escravidão. No trajeto, cruzou com os tenentistas brasileiros rebelados, vindos da Revolta Paulista de 1924, por meio de quem tomou conhecimento do general Isidoro Dias Lopes e da Coluna de Luiz Carlos Prestes. Sem recursos para prosseguir com suas aventuras, inscreveu-se como eletricistaContinuar lendo “O marxismo de Liborio Justo”