Revolucionária, educadora, pioneira do socialismo e do feminismo mexicano, foi membro do Partido Comunista, dirigente do Birô Latino-Americano da III Internacional e protagonista das reformas educacionais de seu país Por Joana Coutinho e Maurício Brugnaro Júnior * TORRES CUÉLLAR, Elena (Mineral de Mellado/Guanajuato/México, 1893 – Cidade do México, 1970) 1 – Vida e práxis política Elena Torres Cuéllar nasceu no final do século XIX, em uma família de trabalhadores pobres do interior mexicano, tendo dificuldades para realizar seus primeiros estudos. Em 1907, com 14 anos, começou sua vida laboral, como caixa, numa loja chamada Negociación Americana. Por esse tempo, passou a frequentar um curso noturno, organizado por professores do Colegio del Estado de Guanajuato, dirigido a estudantes-trabalhadores de baixa renda, e frequentou também aulas particulares de contabilidade e mecanografia. Aos 16 anos publicou seus primeiros escritos, denunciando a ditadura de Porfirio Díaz (1830-1915) – já em seu quarto mandato – e demonstrando sua inconformidade diante da condição subalterna a que eram submetidas as mulheres mexicanas, tanto no âmbito social como no laboral. A princípio, Elena assinava alguns de seus artigos com os pseudônimos de “Una Guanajuatense”, “Violeta” e “Julieta”. Por esta época, várias mulheres contribuíram para a luta revolucionária, opondo-se à ditadura e se manifestando publicamente, dentre as quais se destacam, além de Elena Torres, Dolores Jiménez (1850-1925) e Juana Belén Gutiérrez de Mendoza (1875-1942). Em 1915, em plena guerra revolucionária, foi professora do Centro de Educación da Casa del Trabajador Mundial, em Guanajuato. No mesmo período, conheceu e se aproximou do general constitucionalista Salvador Alvarado (1880-1924), realizando trabalhos educativos no meio rural de vários estados mexicanos. Teve ainda breve experiência como taquígrafa no Cuartel General del Ejército del Noroeste, sob o comando do general Álvaro Obregón, quando José Siurob, governador de Guanajuato, a nomeou como interventora do Colegio Guadalupano, de freiras, dentro das medidas de intervenção revolucionária aplicadas no estado. Sua primeira medida consistiu na promoção da importância da educação e dos ideais revolucionários, exigindo que as freiras assistissem ao Congreso Pedagógico, em dezembro deste ano. Nos meses de janeiro e dezembro de 1916, havendo se aproximado de Hermila Galindo (1886-1954) – uma das mais importantes feministas da época –, Elena viajou a Yucatán (Mérida), para representá-la em dois dos Congresos Feministas. No ano seguinte, mudou-se para Yucatán, onde fez o curso de Desenho, na Escuela de Bellas Artes de Mérida, trabalhou na Escuela Experimental e desenvolveu atividades políticas, integrando-se à equipe de Felipe Carrillo Puerto (1874-1924), dirigente do Partido Socialista Trabajador de Yucatán (PSTY) – que mais tarde passou a se chamar Partido Socialista de Yucatán (PSY). Ainda em 1917, em uma conferência, Elena conheceu o professor Cayetano Andrade, especialista em métodos pedagógicos. A partir desse encontro, passaria a estudar a metodologia Montessoriana – método criado pela médica e educadora italiana, Maria Montessori. Segundo esta pedagoga, a educação deveria priorizar a autoeducação como conquista da própria criança, garantindo assim maior autonomia e liberdade individual no processo de aprendizagem. Elena começaria então a aplicar o método montessoriano a um pequeno grupo de crianças e, em Mérida, apresentou seu projeto de novas práticas educativas ao general e governador Salvador Alvarado, quem a convidou para colaborar com o seu governo, já que compartilhavam a mesma preocupação: a educação como o caminho para a melhoria das condições de vida da população. Durante o mandato de Alvarado (1915-1918) foram criadas cerca de mil escolas rurais. Elena esteve à frente deste projeto, havendo dirigido a primeira escola Montessori. Tais instituições, destinadas à formação dos filhos de trabalhadores pobres, além de serem estabelecimentos de ensino, tinham a função de ser um lar para as crianças, ensinando-as a cuidar de si próprias, a desenvolver seus jogos e intelecto sem as forçar a seguir práticas tradicionais. Em 1919, afetado pelas consequências da guerra civil, o governo de Venustiano Carranza (1917-1920) tomou medidas antipopulares, enfrentando diversas greves. Uma, porém, ganharia destaque, a de 12 de maio – tendo atraído trabalhadores e a opinião pública. Esta greve contribuiu para a formação de um centro organizador entre as educadoras da capital, abrindo mais espaço político para o feminismo e alcançando o apoio da imprensa (por meio de Juana Gutiérrez de Mendoza e Evelyn Trent Roy). Elena Torres foi então enviada para a capital mexicana, pelo PSY, para tentar unir o feminismo radical de Yucatán com grupos do Distrito Federal. Em agosto, impulsionado por Elena, juntamente a Trent Roy e Gutiérrez, deu-se a organização, na Cidade do México, do Consejo Nacional de Mujeres. Elena Torres Cuéllar assumiu como primeira-secretária. Esse Conselho se propunha a unificar os distintos grupos locais e regionais que começaram a emergir em diversos estados, além de trabalhar para estabelecer contato com organizações feministas de outros países – adotando um programa organizado em três eixos: primeiro, a emancipação econômica com igualdade salarial, salário-mínimo, adequação sanitária nas empresas e condições de trabalho para as mulheres; segundo, a emancipação social, com formação de livres associações entre trabalhadores e intelectuais, e igualdade de participação entre homens e mulheres; e terceiro, a emancipação política, com igualdade de direitos políticos para homens e mulheres. Neste mesmo ano, teve lugar na Cidade do México o Congreso Socialista Nacional, que se destinava a formar um partido que pudesse ser reconhecido como a seção mexicana da recém-fundada Internacional Comunista (IC). No evento, Evelyn Trent Roy, a única mulher que havia participado como delegada no congresso socialista, foi quem explanou para suas companheiras do Consejo Nacional de Mujeres as ideias do movimento comunista – que começavam a se difundir pelo mundo. Contudo, com a expulsão de Juana Gutiérrez (por publicar o periódico Alba como se fosse um órgão do Conselho), as outras integrantes se organizam para formar, ainda em 1919, o chamado Consejo Feminista Mexicano, de que Elena Torres se tornou a secretária-geral. Esta nova entidade, considerada a primeira organização política feminista do México, contribuiu para elaborar os projetos e as formas organizativas que o movimento de mulheres seguiria à época, unindo-se ao Partido Comunista de México (PCM) como sua frente feminista. Junto ao PCM, oContinuar lendo “O marxismo de Elena Torres Cuéllar”
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O marxismo de Octávio Brandão
Farmacêutico, jornalista, editor e radialista, foi dirigente político e um dos primeiros teóricos do Partido Comunista do Brasil (PCB) Por Gilberto Maringoni e Paulo Alves Junior * BRANDÃO REGO, Octávio (brasileiro; Viçosa/AL, 1896 – Rio de Janeiro/RJ, 1980) 1 – Vida e práxis política Octávio Brandão nasceu e passou seus primeiros anos em Viçosa, cidade do interior de Alagoas, núcleo de uma região produtora de açúcar dominada por oligarquias agrárias e com pouco desenvolvimento social. Segundo suas memórias, sua formação se deu no seio de uma “pequena-burguesia urbana empobrecida”, que embora adepta de ideias progressistas, era vítima do poder de grandes proprietários rurais “semifeudais”. A morte da mãe, quando Brandão tinha apenas quatro anos, o afetou muito. A partir daí viveria com um tio, em uma pequena casa tipicamente cabocla, no engenho do Barro Branco, regressando à Viçosa só quando seu pai voltou a se casar. Frequentou a Escola Silva Jardim, no ensino fundamental, na qual teria um primeiro contato com ideias evolucionistas, por meio de um professor. Em 1911, quando já morava com outro tio em Maceió – estando matriculado no Colégio Marista –, ficou órfão também de seu pai, homem de ideias republicanas e progressistas. Apesar de criado em um meio conservador católico, rompeu com a religião aos 16 anos, influenciado pela educação paterna, que lhe incutira o questionamento à hipocrisia social; este foi um marco emocional e intelectual dessa fase de sua vida na capital alagoana. Além disto, a percepção da situação de miséria da maior parte da população e o impacto das notícias da Revolta da Chibata (1910) e das greves operárias no Sudeste atraíram cada vez mais sua atenção para os graves problemas do país. Entre 1912 e 1914, residiu na capital pernambucana, onde se diplomou na Escola de Farmácia do Recife (atualmente parte da Universidade Federal de Pernambuco). Logo após a formatura, regressou a Maceió. Ali tomou contato com as principais obras da literatura universal e desenvolveu um agudo interesse científico, o que o fez se voltar para as ciências naturais. Aos 20 anos, empreendeu uma série de viagens pelo interior de seu estado para conhecer sua formação geológica e riquezas naturais. Baseado nestas pesquisas, em 1916 começou a escrever Canais e lagoas (publicado em 1919) – livro que descreve o complexo hídrico Mundaú-Manguaba e pode ser visto como uma das primeiras pesquisas ecológicas brasileiras. Sobre o tema, pronunciou também diversas conferências em Maceió, mostrando evidências da existência de petróleo na região e desde cedo observando a importância que poderia ter a prospecção petrolífera para a economia brasileira. No ano de 1918, começou a escrever para imprensa anarquista – colaborando com o Diário de Pernambuco e tendo fundado o jornal O Povo. À época, vinculou-se também a movimentos de trabalhadores urbanos e rurais, defendendo a jornada de 8 horas e a reforma agrária. Foi preso pela primeira vez em 1919. Depois de libertado, passou a ser perseguido, o que o fez partir, no mesmo ano, para o Rio de Janeiro – onde residiria até 1931, quando foi forçado a deixar o país. Na capital da República, travou contato com o mundo intelectual e político, em especial com Astrojildo Pereira (1890-1965) – que viria a ser um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil (PCB), em março de 1922. Ali, o alagoano se mostraria impressionado com as mobilizações operárias, tendo se aprofundado nos estudos sobre a Revolução Russa. Passou então a escrever nos jornais anarquistas A Plebe, A Vanguarda e na Revista do Brasil (de São Paulo, dirigida por Monteiro Lobato), colaborando ainda com o Spartacus e o Imparcial (Rio de Janeiro), além da revista alemã Ekenntnis und Befreiung [Reconhecimento e Liberação]. Com tais atividades, teve acesso à literatura marxista que chegava ao país – e vem desses tempos sua desilusão com o anarquismo e sua rápida adesão às ideias de Marx e Engels. Em 1920, passou a integrar o integrar o Grupo Comunista Brasileiro Zumbi. Casou-se no ano seguinte com a poetisa e sua companheira de lutas, Laura Fonseca da Silva. Embora não seja um dos fundadores do PCB, Octávio Brandão acompanhou seu desenvolvimento desde o início. Aderiu ao Partido, a convite de Astrojildo, em outubro de 1922. Logo se tornaria dirigente (membro da Comissão Central Executiva) e começaria a estudar metodicamente os clássicos marxistas. No período, adquiriu uma pequena farmácia, estabelecimento que viria a ser uma espécie de escritório e ponto de encontro de militantes populares. Suas pesquisas sobre a Revolução Bolchevique de Outubro resultaram no livro Rússia proletária, escrito neste mesmo ano. Em 1923, já integrando o Comitê Central do Partido, empreendeu uma ousada tarefa: traduzir para o português o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels – a partir da edição francesa revisada pelo próprio Engels. No mês de julho do ano seguinte, explodiu em São Paulo uma revolução que tinha como objetivo derrubar o governo do presidente Arthur Bernardes (1924-28) – que manteve um Estado de sítio permanente ao longo de todo o mandato. Perseguido pela repressão, Octávio Brandão viveria na ilegalidade entre 1924 e 1926, mantendo-se atento aos acontecimentos. Em uma tentativa de dar resposta às questões políticas levantadas pela insurreição, ainda em 1924 redigiu grande parte de sua mais importante obra, Agrarismo e industrialismo – elaborada com colaboração da direção do PCB –, a qual seria complementada e publicada dois anos depois sob o pseudônimo de Fritz Mayer (usado para despistar a polícia). Em 1925, Brandão foi um dos fundadores e o primeiro editor de A Classe Operária, órgão oficial do PCB. À época, ministrou também cursos de teoria política para grupos de operários, em um paciente trabalho de formação, além de fazer panfletagens e vários discursos em manifestações públicas. Em 1927, tornou-se editor-chefe do diário A Nação – que difundia as ideias comunistas entre os trabalhadores. No mesmo ano, com Astrojildo Pereira e outros dirigentes e ativistas, fundou o Bloco Operário, fachada legal do Partido (então na clandestinidade) – uma organização legal e de massas, cujo nome, em 1928, passou a ser Bloco Operário eContinuar lendo “O marxismo de Octávio Brandão”
O marxismo de William Burghardt Du Bois
Historiador, sociólogo, professor universitário e editor, foi um idealizador do pan-africanismo e pioneiro no estudo da questão racial de classe, liderando organizações comunistas antirracistas dos Estados Unidos Por Noemi Santos da Silva e Jônatas Oliveira Pantoja * DU BOIS, W. E. B. (estadunidense-ganense; Great Barrington/Estados Unidos, 1868 – Acra/Gana, 1963). 1 – Vida e práxis política William Edward Burghardt Du Bois foi filho único de Alfred Alexander Du Bois, barbeiro e trabalhador itinerante, e Mary Silvina Burghardt, dona de casa. Sua família era composta por fazendeiros e trabalhadores afro-estadunidenses da Nova Inglaterra. Seu pai tinha nascido no Haiti e migrado para os Estados Unidos, onde serviu como soldado unionista na Guerra Civil. Da parte materna, a ascendência de Du Bois vinha de uma tradicional família de negros livres, sendo o bisavô Tom, um escravizado africano que obteve a liberdade após Independência estadunidense. A partir dos dois anos de idade, Du Bois foi educado pela mãe e família materna, após o pai deixá-los, mudando-se para Connecticut, onde faleceu pouco depois. Até os 17 anos, viveu em sua cidade natal, Great Barrington, no interior de Massachussetts, de população majoritariamente branca. A condição do negro na sociedade de classes dos EUA da segunda metade do século XIX aumentou o significado da formação educacional como via de ascensão, o que permitiu a Du Bois experimentar a confirmação precoce de suas habilidades intelectuais, bem como os limites sociais e econômicos que afetariam sua carreira acadêmica. Foi o primeiro estudante negro a concluir o ensino médio na escola preparatória de sua cidade natal, em 1884. Durante os anos escolares, Du Bois já escrevia artigos para periódicos regionais, como Republican [Republicano] e Globe [Globo]. Aluno destacado, mas sem meios para cobrir as despesas universitárias, recebeu apoio do diretor da escola, que arrecadou doações para custear seu ingresso, em 1885, na Fisk University (Nashville, estado do Tennessee) – instituição surgida no fim da Guerra Civil com a proposta de educar a população negra, recentemente livre da escravidão. Ali, tornou-se editor do Fisk Herald [Arauto de Fisk], dando ênfase às contribuições vanguardistas dos afrodescendentes, além de ministrar cursos para comunidades negras do meio rural. Os anos vividos no sul do país expuseram ainda mais o jovem estudante às contradições sociais de seu tempo – como o racismo e a pobreza. Em 1888, após graduar-se em Fisk, foi admitido na Harvard University (Cambridge, estado de Massachusetts), reduto educacional da elite do país. Lá, formou-se em Filosofia e História em 1890, defendeu o mestrado em 1891 e foi o primeiro afrodescendente da instituição a obter o doutorado – em História, no ano de 1895, com a tese The suppression of the african slave trade to the United States of America, 1638-1870 [A supressão do tráfico de africanos escravizados para os EUA], publicada no ano seguinte na coleção Harvard Historical Studies Series. Entre 1892 e 1894, manteve também vínculo formal como aluno do curso de Economia da Universidade de Berlim (Alemanha), após obter uma bolsa de estudos. Apesar de cumprir a maior parte dos requisitos para a titulação, precisou interromper o curso e voltar para os EUA devido à falta de dinheiro. Então, deu aulas de estudos clássicos e línguas modernas por dois anos na Wilberforce University, (Ohio), instituição destinada a estudantes negros. Ali, conheceu a colega Nina Gomer, com quem se casou em 1896 e teve dois filhos. A formação superior pluri-institucional de Du Bois, assim como seu trabalho docente fora da área em que se especializou, expressam as restrições sociais impostas para um pesquisador vindo de fora dos círculos dominantes da academia; por outro lado, estar fora dos grupos de poder lhe permitiu certo trânsito entre vários campos do conhecimento, predispondo o jovem intelectual à aposta em searas científicas diversas, muitas das quais ainda estavam em seu estágio inicial (caso da Sociologia). Neste percurso, ainda em 1896, ele recebeu o convite para ser professor auxiliar na University of Pennsylvania e para conduzir um estudo sobre o distrito de Seventh Ward na Filadélfia, região habitada majoritariamente por afrodescendentes e imigrantes. Fazendo uso de métodos quantitativos, Du Bois desenvolveu uma pesquisa que resultou em um trabalho de referência sobre a condição de vida da população negra, publicado com o título The Philadelphia negro [O negro da Filadélfia] (1899) – com que se tornou o pioneiro no uso de abordagem sociológica para a compreensão do “problema negro” no país. Em seus estudos da época, o autor chamava a atenção aos fatores estruturais de ordem socioeconômica e racial que levaram a população negra à miséria após a escravidão. A partir de então, dedicou-se a variados estudos empíricos que abordaram as implicações do racismo na sociedade, destacando o valor das culturas de matriz africana. Em 1897, assumiu o posto de professor de Sociologia na Atlanta University (Geórgia/EUA), onde permaneceu por 13 anos, dando início ao primeiro dos dois longos períodos em que permaneceu na instituição (o segundo seria entre 1934 e 1944, quando ocupou a chefia do Departamento). Ali, Du Bois organizou o curso de Sociologia e colaborou com a reformulação do currículo acadêmico; o apoio institucional aos seus projetos foi fundamental para se tornar um autor prolífico e promover o estudo das condições sociais das comunidades negras. Além de sua carreira como docente e de suas pesquisas pioneiras, Du Bois se dedicou também à militância política e ao trabalho editorial. Em 1901, foi convidado por Booker T. Washington (ativista dos direitos civis) para participar do Tuskegee Institute. Contudo, logo percebeu que suas concepções políticas na luta contra o racismo eram divergentes da do líder, cujas ideias para a melhoria da condição de vida dos afro-estadunidenses se baseavam no incentivo à educação para o trabalho técnico, com vistas ao acúmulo gradual de riqueza – o que, para Du Bois, era uma “política acomodacionista”. Segundo ele, apenas uma concessão abrangente de direitos (voto, educação superior e cidadania) poderia garantir alguma ascensão social. Afastou-se do grupo e, em 1905, organizou o Niagara Movement, com o apoio de William Monroe Trotter e outros desafetos de Washington. OContinuar lendo “O marxismo de William Burghardt Du Bois”
Dictionary Marxism in America: a historical rescue of militant memories
After decades of collective work, public access is now available to a series of publications that brings back the historical memory of the first Marxists in the Americas
Le marxisme de Luiz Carlos Prestes
Leader révolutionnaire et dirigeant du Parti communiste brésilien, il a participé à de nombreux événements historiques (tenentismo, Alliance Nationale de Libération). Il a légué une contribution importante pour comprendre la Révolution au Brésil.
Dictionnaire Marxisme en Amérique : une récupération historique de mémoires de lutte
Cette œuvre rend compte de la vie, de la pensée et de la praxis politique des premiers marxistes des nations américaines. Nous la rendons publique après des années de travaux collectifs.
Diccionario marxismo en América: un rescate histórico de memorias combativas
Luego de media década de trabajo colectivo, se empieza a publicar esta obra que registra la vida, el pensamiento y la práctica política de los primeros marxistas de las naciones americanas Por Yuri Martins-Fontes, Joana Coutinho, Pedro Rocha Curado, Felipe Deveza, Paulo Alves Jr. y Solange Struwka * [Traducción del portugués: Claudia Marcela Orduz Rojas y Yodenis Guirola] El Diccionario marxismo en América es una obra de recuperación histórica de la memoria de los primeros pensadores y militantes que, desde el referente teórico del materialismo histórico, se dispusieron a reflexionar y enfrentar los problemas sociales, políticos y económicos de las nuevas naciones americanas, iniciando el desarrollo del pensamiento-lucha marxista en el continente. Obra educativa y crítica de características inéditas, especialmente en lengua portuguesa, el proyecto es coordinado por el Núcleo Práxis de Pesquisa, Educação Popular e Política de la Universidade de São Paulo –organización que se dedica a actividades políticas y de educación popular– y cuenta actualmente con casi un centenar de investigadores voluntarios, de diferentes países, en esta investigación arqueológica sobre los orígenes del marxismo en las Américas. Los primeros tomos, previstos para más de mil páginas, contienen entradas que abarcan biografías y ensayos sobre las ideas y la praxis política de unos 150 marxistas que vivieron, escribieron y actuaron en los países americanos – en un período que va desde el siglo XIX (formación del marxismo en el continente), hasta la década de 1970 (cuando se agudiza la crisis estructural capitalista y se multiplican los marxismos). Por ahora, después de media década de esfuerzos colectivos, el diccionario marxista comienza a hacerse público gradualmente: sus entradas pueden leerse libremente en línea, en forma de “artículos”, disponibles periódicamente en el portal del Núcleo Práxis-USP y luego republicadas por destacados portales asociados. Esta degustación preliminar —del primer volumen, relativo al período de formación del marxismo en América— se extenderá a lo largo de los próximos dos años con el objetivo tanto de divulgar la obra (cuyo objetivo no es sólo teórico, sino también educativo), como de brindar espacio para lecturas críticas y posibles mejoras de los textos, antes de llegar al público en formato de libro. Próximamente, la publicación completa será editada por las Edições Práxis en coedición con la Editora Expressão Popular, y tendrá dos ediciones: una impresa (a precios populares) y otra digital (gratuita). Comienzos de la obra En 2015, los fundadores del Núcleo Práxis-USP, entre encuentros políticos y debates del Grupo de Estudios sobre el Marxismo (uno de sus primeros proyectos), pensaron en ampliar las actividades del colectivo hacia la educación popular. Era un momento difícil, en que se gestaba el golpe de Estado en Brasil, el cual se concretó al año siguiente. En ese contexto, se consideraron dos nuevos proyectos: un foro de discusión sobre derechos sociales (que se creó un poco más tarde, en colaboración con asociaciones y comunidades de la ciudad de São Paulo); y una antología, crítica y didáctica a la vez, que reuniera ensayos de destacados marxistas latinoamericanos, con el fin de ofrecer a estudiantes y trabajadores un panorama de las teorías y prácticas marxistas desarrolladas en nuestra América. En ese proceso, el coordinador general del Núcleo Práxis, Yuri Martins-Fontes, en una reunión en el Laboratorio de Economía Política e Historia Económica de la USP presentó la idea al profesor Wilson do Nascimento Barbosa, quien dirigía las investigaciones de la entidad. En una tarde de diálogo, la idea se afinó y amplió. En lugar de una antología, con artículos complejos, que tendería a restringirse al territorio académico —se pensó: ¿por qué no juntar más esfuerzos y producir una obra más grande, una publicación educativa, de referencia, con textos más cortos pero que lograra presentar la gran diversidad de problemas y corrientes del marxismo desarrolladas por más de un siglo a lo largo del continente —un libro que pudiera servir no solo a los estudios secundarios y universitarios, sino también contribuir a la formación política de los jóvenes socialistas? La semilla estaba plantada. El proyecto fue escrito y presentado a una prestigiosa editorial, que requirió una entrada, como ejemplo. El coordinador respondió a la solicitud, elaborando un primer texto sobre Mariátegui, basado en el modelo que había desarrollado recientemente en su tesis sobre el marxismo latinoamericano (luego publicada como Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui). La editorial aprobó la publicación, aunque destacó que en ese momento no podía dedicarse a la producción del proyecto. La realidad nacional – económica, social, cultural- que no era favorable, pronto se deterioró. El Núcleo Práxis-USP contaba entonces con poco más de una decena de miembros, pocos de los cuales estaban dispuestos a emprender la aventura. Sin apoyo material, o como mínimo estructural, el plan fue archivado. El Renacimiento En 2018, el Núcleo Práxis experimenta un período de crecimiento como resultado del dinamismo en torno a sus proyectos —en particular el Grupo de Estudios (que entonces leía El Capital, de Marx), la traducción colectiva Historia y Filosofía (selección de Caio Prado Júnior, publicada en 2020 en Argentina), y el Fórum de Formação Política de Lideranças Populares (cuyas conversaciones periódicas reunían a educadores y líderes comunitarios). Muchos militantes —investigadores de diferentes áreas, universidades y países —se suman al colectivo. Con este movimiento de expansión, la organización gana aliento y fuerza para considerar nuevas acciones. Las reuniones sobre posibles rumbos se sucedieron hasta que es aprobado el propósito de construir una publicación periódica: una revista política de carácter popular, que ofreciera a estudiantes y trabajadores una voz discordante en aquel ambiente fascista que reverberaba en el país —una época de creciente irracionalidad, si no apoyada, sí consentida por los grandes medios de comunicación y demás fuerzas neoliberales, irritadas por las reformas sociales (básicas) de los gobiernos populares. Nuestra experiencia con publicaciones periódicas era escasa —limitada a unos pocos miembros que, en la década de 2000, durante algunos años, habían editado el tabloide A Palavra Latina. Por otra parte, el buen momento del colectivo se notaba en la propia intención, manifiesta por varios de los participantes, de implicarse en un proyecto periódico de largo plazo. Hay un ir y venir de propuestas y debates hastaContinuar lendo “Diccionario marxismo en América: un rescate histórico de memorias combativas”
O marxismo de Vicente Lombardo Toledano
Professor, advogado, sindicalista, político e jornalista, foi fundador da Confederação de Trabalhadores da América Latina e do Partido Popular Socialista mexicano, com destacada atuação nos debates públicos do período pós-revolucionário Por Pedro Rocha Curado e Athos Vieira * LOMBARDO TOLEDANO, Vicente (mexicano; Teziutlán/México, 1894 – Cidade do México, 1968) 1 – Vida e práxis política Vicente Lombardo Toledano nasceu no estado de Puebla, no seio de uma família de comerciantes de origem italiana. Seu pai, Vicente Lombardo Carpio, possuía propriedades e investimentos no setor de mineração, além de ter se envolvido com a política, sendo eleito prefeito de Teziutlán, em 1905. A infância e a juventude de Lombardo Toledano se passaram entre a última década do governo do general Porfirio Díaz (1876-1911) e as repercussões da Revolução Mexicana de 1910. O turbulento contexto social de seus anos de formação contribuiu para edificar nele o interesse pela política e história mexicana. Lombardo teve o privilégio de frequentar boas escolas; após realizar os primeiros anos de estudos no Liceo Teziuteco, foi enviado, em 1909, à Cidade do México para se matricular na Escuela Comercial Francesa. No ano seguinte, foi aprovado na prestigiosa Escuela Nacional Preparatoria, onde terminaria a formação escolar. Em 1914, ingressou na Faculdade de Direito da Universidad Nacional de México (UNM) – que em 1929 viria a ser denominada Universidad Nacional Autónoma de México – e logo direcionou seus estudos para temas sociais. Fundou, com seis companheiros, a Sociedad de Conferencias y Conciertos (1916), inspirados na experiência do Ateneo de la Juventud Mexicana – grupo que reuniu intelectuais críticos ao pensamento positivista dominante durante a época de Porfirio Díaz. O objetivo desta sociedade era promover uma cultura humanista entre estudantes e trabalhadores através de leituras públicas sobre o socialismo e debates sobre justiça, democracia, educação e sindicalismo. Os tempos eram favoráveis às pautas progressistas; as diretrizes sociais expressas na nova Constituição de 1917 – a primeira a conferir aos direitos trabalhistas um tratamento universal, além de garantir liberdades políticas e individuais de expressão, culto e associação – indicavam um país em rápida transformação. No ano de 1917, Lombardo assumiu o cargo de secretário da Universidad Popular Mexicana, posto que lhe permitiu atuar mais próximo ao movimento sindical. Tal relação nortearia sua atuação como político e educador por toda a vida. Dois anos depois, ele se licenciou em Direito. Em 1921, casou-se com Rosa María Otero Gama – com quem teve três filhas. Nesta década, passou a dividir sua atuação entre a política, o sindicalismo e a docência – atividades que desde então desempenharia sempre. Foi também nessa época que aprofundou seus estudos acerca do marxismo, passando a adotar o materialismo histórico como chave de leitura e interpretação das sociedades humanas, em particular a mexicana. No campo sindical, em 1921, associou-se à Confederación Regional Obrera Mexicana (CROM) – então a maior organização sindical do país –, logo se tornando membro do Comitê Central deste sindicato (entre 1923 e 1932); posteriormente, porém, rompeu tal ligação por divergências internas com a corrente colaboracionista pró-governo, e sua atuação sindicalista se estenderia por outras organizações. Já a carreira política de Lombardo Toledano teve início ao assumir o posto de governador interino de Puebla, diante de um contexto de forte crise institucional (entre 1923 e 1924). Em seguida, elegeu-se duas vezes para o cargo de deputado do Congresso da União (períodos de 1924-1925 e de 1926-1928), ambos pelo Partido Laborista Mexicano. Seus mandatos ficaram marcados por sua participação nas discussões pela regulação dos direitos trabalhistas, o que culminou com a promulgação da Ley Federal del Trabajo (de 1931) – voltada para o aprofundamento dos aspectos individuais, coletivos, administrativos e processuais do trabalho. Em 1927, tornou-se secretário-geral da Confederación Mexicana de Maestros; em 1932, da Federación de los Sindicatos Obreros del Distrito Federal (FSODF). A partir 1933 (até 1946) dirigiu a Revista Futuro, publicação que reuniu a intelectualidade revolucionária da época, discutindo temas-chave como a realidade mexicana, o movimento operário internacional e a II Guerra. No campo educacional, após acumular experiência com atividades docentes em diferentes institutos nos anos anteriores, Lombardo ajudou a fundar duas universidades: a Universidad Gabino Barreda (que só durou de 1934 a 1936); e a Universidad Obrera de México, fundada em 1936 (em atividade até hoje). Nesta última, lecionou disciplinas como “História das Doutrinas Filosóficas”, “Materialismo Dialético”, “Economia Política”, “Direito Trabalhista”, “História do México” e “História do Imperialismo”, entre outras. Assumiu o posto de reitor nas duas instituições (naquela, entre 1934 e 1936, nesta, entre 1937 e 1968). Em 1935, viajou para a União Soviética, interessado em conhecer de perto o desenvolvimento político e social do país; visitou várias cidades (como Carcóvia, Bacu, Tiblíssi e Sótchi) e, em Moscou, participou do VII Congresso da Internacional Comunista (IC). Este evento ficou marcado pela diretriz, feita aos Partidos Comunistas do mundo, de buscarem a construção de “frentes amplas” multiclassistas, como forma de conter o avanço dos partidos de extrema-direita em seus países; as deliberações da IC tiveram grande influência no desenvolvimento das estratégias políticas defendidas pelo marxista. Entre 1936 e 1940, Lombardo foi secretário-geral da Confederación de Trabajadores de México (CTM) – criada em 1936 para substituir a CROM. Durante este período, defendeu o apoio da organização ao governo do general Lázaro Cárdenas (1934-1940), pois o considerava “progressista”, tanto por implementar um programa de reforma agrária como por colaborar para a união dos mexicanos através da propagação de noções de equidade e do fortalecimento de uma consciência de “nação” – dois legados da Revolução Mexicana. A boa relação que manteve com o governo Cárdenas lhe permitiu avançar com novos projetos nos campos sindical e educacional. Assim, em 1938, ajudou a criar a Confederação de Trabalhadores da América Latina (CTAL), a maior organização trabalhista do continente (que em seu auge reuniu centrais sindicais de 14 países americanos) – da qual seria o presidente desde sua fundação até seu encerramento, em 1963. Entre 1945 e 1964, exerceu também o cargo de vice-presidente da Federação Sindical Mundial (FSM) – com sede em Paris, da qual passou aContinuar lendo “O marxismo de Vicente Lombardo Toledano”
O marxismo de Astrojildo Pereira
Gráfico, jornalista, ensaísta e crítico literário, foi fundador e dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCB), destacando-se como divulgador do comunismo e por contribuir para a formulação de uma das primeiras interpretações marxistas da realidade brasileira Por John Kennedy Ferreira e Felipe Santos Deveza PEREIRA Duarte Silva, Astrojildo (brasileiro; Rio Bonito/RJ, 1890 – Rio de Janeiro/RJ, 1965) 1 – Vida e práxis política Astrojildo Pereira Duarte Silva nasceu em Rio dos Índios, pequeno povoado do estado do Rio de Janeiro, sendo filho de Ramiro Pereira Duarte Silva e de Isabel Neves da Silva. Seu pai, descendente de portugueses e formado em medicina, foi fazendeiro, comerciante e pequeno industrial, vindo a migrar do interior para Niterói e depois para o Rio de Janeiro. Em sua cidade natal, Astrojildo estudou inicialmente em escola pública e depois particular. Com o crescimento dos negócios da família, aos 13 anos mudou-se para Nova Friburgo (RJ), matriculando-se no tradicional Colégio Anchieta, dirigido por jesuítas. Influenciado pelo novo ambiente, nutriu o desejo de ser “frade, não padre”, mas logo se desencantou com a fé, ao considerar que seus professores católicos mentiam – e a partir desse momento rompeu com o catolicismo. Nesse colégio terminou o ensino secundário e, sem motivação para continuar os estudos formais, dedicou-se durante um tempo ao empreendimento do pai. Trabalhou como gráfico e jornalista, além de ensaísta, tornando-se um leitor apaixonado e dono de um “autodidatismo arquiatabalhoado”, como ele mesmo se descrevia. Desde cedo, dedicou-se à militância política. Com um engajamento ativo, de início apoiou a candidatura liberal de Rui Barbosa à Presidência da República (1910); mais tarde, indignado com a ação do Estado contra a Revolta da Chibata (1910), aderiu ao ideário anarquista. Em 1913, ajudou a organizar o II Congresso Operário Brasileiro. Após o evento, passou a colaborar com diversos órgãos da imprensa anarquista e sindical, e desde este momento passou a ser reconhecido como uma das principais lideranças operárias. Durante a I Guerra Mundial, Astrojildo notabilizou-se por denunciar o caráter imperialista do conflito, sustentando a neutralidade brasileira. Quando eclodiu a Revolução Russa de 1917, acompanhou as matérias reproduzidas pelas agências franco-inglesas – que chegavam à América Latina através das agências de notícias de países envolvidos na Guerra. Nos noticiários, os “maximalistas”, como foram chamados os revolucionários russos, seriam tratados como agentes da espionagem alemã, como bandidos arruaceiros e, algumas vezes, como sonhadores utópicos ou infantis. Por meio de investigações e de análise crítica, Astrojildo procurou esclarecer o que estava realmente ocorrendo na distante Rússia –governada pelo regime absolutista dos czares –, país que, desde fevereiro de 1917, parecia oscilar entre uma situação de caos, um regime liberal “de tipo ocidental” e algo novo. Em 1918, sob o pseudônimo Alex Pavel, o até então adepto do anarquismo escreveu uma série de cartas à imprensa dominante da época, em que questionava as premissas difundidas acerca do caráter da Revolução Russa e de personagens como Lênin. Ainda neste ano, com alguns camaradas anarquistas, liderou a tentativa de insurreição armada de trabalhadores no Rio de Janeiro – sendo preso por alguns meses. Foi neste processo de evolução política internacional que Lênin e os revolucionários marxistas passaram a se tornar a solução para o impasse anarquista – e Astrojildo, como muitos libertários da época, logo viria a ser um fervoroso apoiador dos bolcheviques e da nova Internacional Comunista (IC). Em março de 1919, após uma greve geral e uma tentativa frustrada de criar um soviete, Astrojildo e seu grupo resolveram aceitar a convocação feita pela recém-criada IC – e fundaram um efêmero Partido Comunista do Brasil. Os principais organizadores deste partido, além dele, foram: José Oiticica, Maria de Lourdes Nogueira, Octávio Brandão e Edgard Leuenroth. Uma interessante característica desta agremiação foi a de que seus líderes eram mais anarquistas do que propriamente comunistas. E o grupo logo se dividiu entre os que apoiavam a Revolução Russa e os que eram críticos do processo. Conforme se aguçaram as intervenções contrarrevolucionárias na Rússia, bem como as contradições entre as correntes que apoiavam a Revolução Bolchevique, Astrojildo passou a liderar os grupos favoráveis à Rússia Soviética, sobretudo por meio do jornal Spartacus – embora tenha mantido como objetivo a unidade do movimento sindical (que neste momento estava em refluxo). Em 1920, ajudou a organizar o III Congresso da Confederação Operária Brasileira (COB), buscando trazer como modelo ao movimento sindical brasileiro a linha do sindicalismo estadunidense da Industrial Workers of the World (IWW) [Trabalhadores Industriais do Mundo], que era um exemplo de frente única entre anarquistas e socialistas marxistas. Este esforço, porém, não alcançou o resultado esperado. Após a realização do III Congresso da IC e do contato que estabeleceu com um representante da Internacional, Astrojildo decidiu empenhar-se na formação de um partido comunista. Em 7 de novembro de 1921 foi criado o Grupo Comunista do Rio de Janeiro – o qual estimularia a organização de outros coletivos. Pouco depois, em 25 de março de 1922, foi fundado o Partido Comunista do Brasil (PCB), que se tornaria a Seção Brasileira da IC (sendo, na década de 1960, renomeado Partido Comunista Brasileiro, devido a questões de registro legal). Contudo, em julho deste ano, o país passou a viver sob estado de sítio – o que duraria até dezembro de 1926 – e, com isto, o novo partido foi logo lançado à ilegalidade. Com o Levante do Forte de Copacabana (julho de 1922), a insurreição dos tenentes e sua breve tomada de poder em São Paulo (1924), Astrojildo percebeu que a conjuntura da época apontava para um colapso do regime político nascido com a República. Isso levou a que ele e o Comitê Central do PCB buscassem alianças com a juventude militar rebelada – setor da pequena burguesia brasileira que representava e impulsionava certas demandas democráticas. Para tanto, Astrojildo foi até a Bolívia (em 1927) encontrar-se com Luiz Carlos Prestes e propôs ao comandante tenentista a composição de uma aliança política; na ocasião, o Cavaleiro da Esperança e outros militares insurretos leram e discutiram os materiais e livros trazidos peloContinuar lendo “O marxismo de Astrojildo Pereira”
O marxismo de Nelson Werneck Sodré
Escritor, militar, crítico literário, jornalista, professor e historiador, foi um dos principais intelectuais marxistas brasileiros – tendo abordado, em sua vasta obra, desde temas da cultura e história do Brasil a reflexões políticas, econômicas e filosóficas Por João Quartim de Moraes e Francisco Quartim de Moraes * WERNECK SODRÉ, Nelson (brasileiro; Rio de Janeiro, 1911 – Itu/SP, 1999) 1 – Vida e práxis política Filho de Heitor de Abreu Sodré, advogado oriundo de uma família de fazendeiros de café empobrecidos, e de Amélia Werneck Sodré, de mesma origem social, Nelson Werneck Sodré revelou desde cedo gosto pela leitura. Foi em casa, antes de começar a frequentar a escola pública, na Muda da Tijuca (Rio de Janeiro), que se sentiu motivado pelo “desejo profundo de aprender a ler”. Preocupado com o futuro profissional do filho, o pai aprovou seu ingresso no Colégio Militar, em 1924. Também precoce na escrita, em 1929 ele publicou seu primeiro conto – na revista O Cruzeiro. Em 1930, Sodré entrou na Escola Militar do Realengo, onde se graduou no final de 1933, iniciando como aspirante sua carreira de oficial do Exército. Mais tarde, ele evocaria em um de seus escritos autobiográficos o “tempestuoso período” atravessado pelo Brasil durante os anos finais de sua infância e os de sua juventude, marcados pelo movimento tenentista, a agonia da República oligárquica, o modernismo na literatura e nas artes e a Revolução de 1930. As tempestades políticas continuaram durante os primeiros anos de sua atividade como oficial: o Levante Comunista de 1935; e a ditadura do Estado Novo, instaurada por Getúlio Vargas em 1937. Porém, isto não o impediu de assumir seus deveres militares com responsabilidade, o que inspirou confiança a colegas e superiores hierárquicos. Em 1934, o jornal Correio Paulistano, com o qual colaborava desde 1931, convidou-o para exercer a crítica literária – tarefa que realizaria pelo próximo quarto de século. Em 1937, após ter servido em unidades militares de São Paulo, foi transferido para o Rio de Janeiro, onde entrou em contato com alguns dos mais importantes escritores brasileiros de então – desde expoentes do campo da esquerda, como era o caso de Graciliano Ramos e Samuel Weiner, como da direita, como Oliveira Viana e Azevedo Amaral. Em 1941, passou a escrever para o jornal O Estado de São Paulo, bem como para Cultura Política – revista teórica ligada ao regime ditatorial. Mais tarde, Sodré alegaria que, embora fosse politicamente “alienado” à época, não escrevia artigos que pudessem soar como bajulação ao Estado Novo; naquele contexto, Vargas buscava reagrupar em torno de seu projeto nacional intelectuais de várias tendências ideológicas – de Gilberto Freyre e Azevedo Amaral a Álvaro Vieira Pinto e Graciliano Ramos, empenhados em estudar de modo inovador a sociedade e cultura brasileiras. Transferido em 1942 para um grupo de artilharia na Bahia, Sodré não tardou em se aproximar do núcleo de intelectuais comunistas que lá atuavam. Embora ele levasse a sério a carreira militar, evitava que ela interferisse em sua consciência e ação política. Essa aproximação prosseguiu rumo às posições e lutas que o consagrariam como uma importante expressão do marxismo brasileiro. Por conta das perseguições do Estado Novo aos membros do Partido Comunista do Brasil (PCB), sua adesão partidária formal permaneceu sigilosa. Em 1943, a tese de que o Brasil deveria participar diretamente das operações da II Guerra Mundial na Europa, defendida por Oswaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores, ganhou força na cúpula do Estado Novo, vencendo a relutância dos generais Gaspar Dutra e Góes Monteiro – dois dos principais chefes militares. Em 2 de julho de 1944, a Força Expedicionária Brasileira (FEB) embarcou para a Itália. Convencido de que o regime ditatorial do Estado Novo não era mais sustentável, Getúlio Vargas promulgou em 28 de fevereiro de 1945 uma lei constitucional convocando eleições gerais para 2 de dezembro, restabelecendo algumas atribuições ao Congresso e fixando parâmetros para a reforma da Constituição. Em 18 de abril de 1945, uma anistia geral dos presos políticos abriu caminho para o retorno dos comunistas à cena política nacional. Em 15 de maio, os sindicalistas getulistas formaram o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Sodré acompanhou de perto esta virada democrática, pois se fixara no Rio de Janeiro, desde 1944, para seguir o curso da Escola de Estado-Maior (que concluiu em 1946, recebendo a patente de major e o cargo de professor de História Militar na mesma Escola). As massas sindicalizadas, em crescente mobilização, defendiam a convocação de uma Assembleia Constituinte “com Getúlio”. Os comunistas também: em sucessivos comícios, Prestes, enfim livre após nove anos de prisão, anunciou apoio ao governo. O prestígio popular que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) conferia a Getúlio assustava a burguesia liberal, a direita conservadora e a Embaixada estadunidense. Coube aos generais Dutra e Góes Monteiro (que oito anos antes apoiaram a instauração da ditadura) a tarefa de montar o golpe que deporia Getúlio em outubro de 1945. Um governo provisório conferiu poderes constituintes ao Congresso a ser eleito em dezembro. Sodré, crítico do Estado Novo, mas favorável à “Constituinte com Getúlio”, via no golpe liberal o estabelecimento de um dispositivo militar que, ainda sob o formalismo democrático, resguardava as forças conservadoras e lhes permitia o controle da situação. Nas eleições de dezembro de 1945, as eleições para a presidência da república foram disputadas pelo general Gaspar Dutra, candidato do Partido Social-Democrático (PSD), composto sobretudo de chefes políticos colaboradores do governo de Getúlio, e pelo brigadeiro Eduardo Gomes lançado pela União Democrática Nacional (UDN), que juntava a direita liberal antigetulista e pró-estadunidense. O PTB apoiou o candidato do PSD, que foi eleito. Porém, Dutra, após angariar os votos getulistas, aliou-se com Gomes e a UDN, formando o que Sodré chamou de “consulado militar”, que tratou o trabalhismo como inimigo, tratou a mobilização popular como assunto de polícia e, evocando os ódios da “Guerra Fria”, pressionou o Judiciário e o Congresso até conseguir que cassassem o registro do PCB, bem como os mandatos de Prestes no Senado e de todos os comunistas eleitosContinuar lendo “O marxismo de Nelson Werneck Sodré”
O marxismo de Lívio Xavier
Jornalista, tradutor, poeta e crítico literário, foi pioneiro do trotskismo brasileiro, tendo sido membro do Partido Comunista do Brasil (PCB) e, mais tarde, fundador do Grupo Comunista Lênin e da Liga Comunista Internacionalista Por José Eudes Baima Bezerra * XAVIER, Lívio Barreto; “L. Lyon”, “L. Mantsô” (brasileiro; Granja/CE, 1900 – São Paulo/SP, 1988) 1 – Vida e práxis política De família abastada, Lívio Xavier foi uma criança cercada dos confortos possíveis naqueles tempos e paragens do interior do Ceará, mesmo sendo o terceiro de uma família de 13 rebentos. Teve como pais Elisa Barreto Xavier e Ignácio Xavier – quem de início foi caixeiro-viajante e mais tarde se associou ao poderoso comerciante Carvalho Mota, o que lhe permitiria constituir uma empresa própria (chegando a ser tratado como “coronel”). O pai do futuro revolucionário era adepto da reacionária oligarquia dos Acciolys, laços que resultaram em facilidades usufruídas depois pelo filho – quando teve de se deslocar a Fortaleza para estudar. A formação espiritual de Lívio Xavier, seu ingresso no universo da leitura e da escrita, começou muito cedo, por volta dos cinco anos de idade, quando sua inteligência já chamava a atenção – influenciado por sua mãe, que lia muito, e pelo contato com os negociantes que transitavam na firma do pai. Porém, seu caráter questionador também o afastava da participação nas tradições locais, especialmente as religiosas, às quais dedicava indiferença no que dizia respeito à doutrina, mas não em relação aos aspectos cênicos dos rituais, que o fascinarão até a idade adulta. Além da fruição estética, a vida religiosa na pequena Granja (ainda mais tendo como padrinho de crisma o próprio bispo diocesano) era um sinal de distinção social; mas ele nunca chegou a ser um fiel. Desde os primeiros estudos na escola, exerceu em paralelo um intenso autodidatismo, já que a família constituíra um bom acervo de livros célebres: de Victor Hugo, Herculano e Júlio Diniz a José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Olavo Bilac. Aos 13 anos, partiu do porto de Camocim, cidade litorânea mais próxima de Granja, para Fortaleza, onde levaria a cabo os estudos secundários e viveria sob a proteção dos amigos ilustres da família – até se mudar para o Rio de Janeiro para cursar direito. A evolução política de Xavier, de jovem intelectual inquieto – insatisfeito com o estado de coisas – até sua militância comunista, passou pela amizade e camaradagem com outro nordestino, o pernambucano Mário Pedrosa, seu colega na Faculdade de Direito, no Rio de Janeiro. Os amigos compartilhavam interesses pelos temas da arte, da literatura e da política. Com efeito, ambos se tornaram fortes referências ao longo do século XX, no cenário da cultura brasileira: Pedrosa na teoria e crítica de arte, Xavier na crítica literária e teatral. Nos agitados anos 1920, os companheiros se lançaram juntos na jornada revolucionária. A trajetória de ambos em direção ao comunismo foi alicerçada numa intensa e ininterrupta reflexão comum, testemunhada por uma alentada correspondência, que foi recuperada e publicada na obra Solidão revolucionária, de José Castilho Marques Neto (1993). Em cartas escritas desde 1923, Pedrosa e Xavier discutiam apaixonadamente acerca dos nomes mais inovadores da literatura europeia do século anterior e faziam referência aos novos autores surrealistas, como André Breton, o que desempenhará certo papel na adesão dos amigos ao Partido Comunista do Brasil (PCB) e, depois, sua deriva no seio da Oposição comunista. Os surrealistas franceses, desde seu primeiro Manifesto, estabeleciam uma relação entre arte, literatura e revolução proletária que os dois companheiros, na medida do possível, acompanharam em tempo real. Lívio Xavier e Mário Pedrosa não fizeram parte do agrupamento de militantes que fundou o PCB em 1922, mas desde muito cedo acompanharam a atividade do Partido, sob o impulso dos ecos da Revolução Russa de outubro de 1917. Em seus diálogos, estavam presentes referências a Lênin, Trótski e à revolução socialista na Rússia. Pedrosa, por esta época, mostrava-se impressionado com a intransigência revolucionária de Lênin e com a potência imaginativa da prosa de Trótski, que lia nas versões em francês. Entre 1925 e 1927, entre idas e vindas entre o Nordeste e o Rio de Janeiro, Xavier e Pedrosa se envolveram indiretamente em atividades do PCB, em especial participando da criação da Revista Proletária, que teve apenas uma edição, na qual Xavier contribuiu com o artigo “Partido e revolução”. Em 1927, filiou-se ao PCB. Por esta época, chegava ao ápice a luta interna na Internacional Comunista (IC), cujas tensões iniciais ocorreram quando Lênin, principal dirigente da Revolução de Outubro de 1917, ainda estava vivo, mas que tomaram maiores proporções após sua morte. A crise tinha como pano de fundo o fato de que a Rússia, numa situação de virtual desaparecimento físico da geração que fizera a Revolução de 1917 (fruto da guerra civil e da invasão do país por várias potências estrangeiras), com a atividade industrial e a população operária tendo caído abaixo da de 1917, teve de apelar à reintrodução dos mecanismos de mercado, com o objetivo de reativar a vida econômica. O Estado soviético, o Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e a IC receberam, num tempo histórico curto, uma nova leva de membros egressos das camadas sociais beneficiárias das medidas de mercado (adotadas de forma emergencial). Neste cenário, em 1924, Stálin ascendeu ao poder, vindo a consolidar sua posição hegemônica em 1928. Dadas as circunstâncias, anunciou-se então um novo rumo político, baseado na teoria do socialismo num só país – elaborada por N. Bukárin, que advogava que o socialismo poderia ser atingido na União Soviética mesmo em meio a regimes capitalistas hostis. A partir de 1923, Trótski iniciou a resistência a esse processo, mas, paulatinamente, os partidos da IC aderiram ao stalinismo. Em 1927, Trótski foi destituído do Comitê Central do PCUS, e em 1928 foi deportado, iniciando uma jornada de exílio. Lívio Xavier e Mário Pedrosa aderiram formalmente ao PCB justamente no momento em que chegavam ao Partido os ecos desta divergência ocorrida no PCUS. No Brasil, a crise teve três pontos-chave:Continuar lendo “O marxismo de Lívio Xavier”
O marxismo de Luis Emilio Recabarren
Tipógrafo, editor, jornalista e intelectual autodidata, foi militante sindical, dirigente político, fundador do Partido Comunista de Chile e intenso propagador das ideias socialistas Por Daniel de Souza Sales Borges * RECABARREN Serrano, Luis Emilio (chileno; Valparaíso/Chile, 1876 – Santiago, 1924) 1 – Vida e práxis política Luis Emilio Recabarren Serrano era filho de José Agustín Recabarren e Juana Rosa Serrano, dois pequenos comerciantes e pais de mais cinco irmãs e um irmão. Estudou por quatro anos na escola de padres salesianos Santo Tomás de Aquino, antes de sua família se mudar para Santiago, em busca de melhores condições de vida. Na capital, a necessidade de ajudar a família o fez arranjar um emprego como tipógrafo em uma pequena oficina, quando tinha apenas 14 anos. De forma autodidata, por meio de seus colegas de trabalho e do pequeno movimento operário de Santiago, começou a ter contato com obras de literatura e filosofia, que constituiriam as bases da sua formação. Em 1894, aos 18 anos, Luis Recabarren se casou com Guadalupe del Canto, sua prima, e com ela permaneceu até 1911 – tendo dois filhos, Luis Hermenegildo e Armando (que faleceu ainda bebê). A atuação de Recabarren como jornalista militante se iniciou por volta de 1898, quando publicou no jornal La Tarde, de Santiago, uma carta dirigida ao diretor do periódico, com quem polemizava, defendendo o socialismo e afirmando sua simpatia pelas ideias socialistas – com vistas a levar a cabo “transformações sociais” e “fazer desaparecer as injustiças”. No ano seguinte, engajou-se firmemente na atividade publicística socialista, passando a atuar como secretário do Comitê Diretivo do jornal La Democracia, de Santiago, do qual no ano seguinte chegou a ser diretor. A publicação era editada pelo Partido Democrático (PD), um pequeno partido composto, principalmente, por trabalhadores urbanos, no qual Recabarren ingressara em 1894. Em 1901, divergências levaram esse partido a se dividir em duas organizações: a liderada por Malaquias Concha, chamada de “reglamentaria”; e a liderada por Francisco Landa – à qual Recabarren se associou –, dita “doctrinaria”. A natureza de suas atividades partidárias e de divulgação socialista em jornais operários fez com que Recabarren retornasse a Valparaíso, ainda em 1902. No ano seguinte vivenciou seu primeiro período na prisão, acusado de fraude em atas eleitorais. Posto em liberdade após três meses, foi eleito vice-presidente da mesa diretiva da organização do II Congreso Nacional Obrero, em setembro de 1903. Neste mesmo ano, sua militância se intensificou e atingiu maior relevância, ao ser convidado por Gregorio Trincado, presidente da Sociedad Mancomunal de Tocopilla (uma sociedade de ajuda mútua mantida pelos trabalhadores), para fundar e editar um periódico com o objetivo de representar e defender os interesses desta organização trabalhista. As reivindicações por liberdades democráticas, embora consagradas pelo ideário liberal, encontravam eco nos trabalhadores das minas do Norte do país, que apesar de estarem vivendo a expansão do ciclo do salitre, estavam subjugados pela superexploração da sua força de trabalho – e neste contexto as sociedades mancomunais foram importantes na conquista de melhores condições laborais, além de fortalecê-los nas negociações coletivas com os patrões. A participação nas sociedades mancomunais e a proximidade com os mineiros do norte do país forjariam sua formação durante estes tempos, sendo seu pensamento e militância impactados a partir das lutas, formas de associação e difusão de ideias daqueles trabalhadores. Assim, em outubro deste ano, surgiu a primeira edição do jornal El Trabajo, no qual Recabarren manteve intensa atividade militante contribuindo com 43 artigos – motivo pelo qual seria preso novamente, em janeiro de 1904, sob a acusação de “subversivo”. Durante sua prisão, travou polêmicas com anarquistas chilenos sobre os rumos do movimento operário do país. Recabarren, homem de partido, embora tivesse sido também influenciado pelo anarquismo, era crítico de muitas das concepções autonomistas; pouco antes de ser libertado, escreveu um texto no qual definia com firmeza sua posição política, afirmando-se um “socialista revolucionário”. Em outubro de 1904, ao sair do cárcere, retomou sua atividade jornalística em El Trabajo e El Proletario, este último o jornal da seção local do PD. Em 1906, sua reputação, construída como jornalista operário junto aos trabalhadores, muito contribuiu para elegê-lo (pelo PD) deputado nacional, pelo estado de Antofagasta. Com esta eleição, encerrou-se para ele um ciclo de intensa atividade no Norte chileno, movendo-se novamente para Santiago para tomar posse. Na capital, Recabarren foi impedido de assumir o mandato parlamentar devido a manobras jurídicas e políticas, tanto dentro de seu partido, o PD, quanto do Partido Radical, o que resultou em uma acusação de fraude e nova ameaça de encarceramento. Recabarren partiu então para um exílio na Argentina, desembarcando em Buenos Aires em 1907. Manteve aí sua atividade jornalística e, desde que chegou ao país, integrou-se tanto ao Partido Socialista argentino como ao movimento operário local, o qual admirava devido a seu avançado processo de consciência de classe – ainda que influenciado por ideias anarquistas (das quais ele se afastava). Neste mesmo ano, houve uma tentativa de aproximação entre as duas principais associações operárias da Argentina, a Unión General de Trabajadores e a Federación Obrera Regional Argentina, para fundirem-se na Confederación General del Trabajo. Assim, entre março e abril de 1907, no Teatro Verdi (capital federal), foi realizado o Congreso de Unificación de las Organizaciones Obreras, com a participação de mais de uma centena de sindicatos e grêmios, dentre os quais a Unión Gráfica, entidade pela qual Recabarren compareceu como representante – fazendo uma dura intervenção contra as falas dos dirigentes anarquistas presentes. O resultado, naquele momento, foi o fracasso das tratativas para a unidade das duas associações. Rompendo definitivamente com o anarquismo, Recabarren reforçou suas convicções marxistas, trabalhando ativamente – embora sem sucesso – para revisão do programa (de 1887) do PD, bem como por sua mudança de nome para Partido Democrata Socialista, com o objetivo de torná-lo afiliado à II Internacional (Socialista). Com este intuito, em 1908 viajou à Europa e se encontrou com líderes socialistas, como Jean Jaurès na França, Pablo Iglesias na Espanha e Emile Valdeverde, na Bélgica – tendo assistido,Continuar lendo “O marxismo de Luis Emilio Recabarren”
O marxismo de Ricardo Paredes Romero
Médico, escritor, político, intelectual e dirigente comunista, foi fundador do Partido Comunista del Ecuador, desempenhando um papel central no desenvolvimento do marxismo equatoriano Por Vitor Vieira Ferreira e Yuri Martins-Fontes * PAREDES Romero, Ricardo (equatoriano; Riobamba/Equador, 1898 – Quito, 1979) 1 – Vida e práxis política Ricardo Paredes Romero nasceu na capital do estado andino de Chimborazo, situado no centro do território equatoriano. Seu pai foi Alejandro Paredes Pérez, um funcionário do Ministério da Economia que faleceu quando ele tinha apenas 4 anos. Sua mãe, María Romero Gallegos, comerciante, teve a incumbência de criar sozinha os quatro filhos. Desde cedo, Ricardo Paredes demonstrava sua inconformidade ativa perante as injustiças que vivenciava e observava. Ainda adolescente, organizou-se junto a um grupo de colegas para protestar contra os castigos a que os estudantes eram submetidos no colégio jesuíta San Felipe Nery, onde estudou entre 1908 e 1913. Em virtude desta reivindicação, em que se chegou a ocupar a reitoria da escola (demandando a demissão de professores que cometiam excessos), ele foi expulso, além de preso por um dia para interrogatório – tendo de cursar seu último ano em outro estabelecimento de ensino. Em 1914, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidad Central de Quito. A formação acadêmica e profissional contribuiu em diferentes aspectos para sua conscientização social, sobretudo no que diz respeito a sua inclinação por conhecer mais a fundo as questões políticas de seu país. Ao longo do curso, Paredes demonstrou especial interesse em estudar os danos causados pela sífilis em mulheres grávidas e em seus filhos, tópico que seria central em suas pesquisas. Durante a graduação, tais casos foram acompanhados de perto por ele, em suas visitas aos hospitais de Quito; com isto, pôde logo perceber que se tratava da expressão de um grave problema epidemiológico que acometia a cidade à época. Seus estudos médicos não se limitaram a um trabalho de análise técnica, mas buscaram causas socioeconômicas. Para além de investigar como a bactéria responsável pela doença atuava no organismo e quais eram seus sintomas ou possibilidades de tratamento, ele pesquisou a sífilis enquanto problema social – como uma questão historicamente situada que impactava a vida cotidiana de um grande número de indivíduos, especialmente aqueles dos estratos sociais mais pobres. De modo mais amplo, deu-se conta do vínculo entre a epidemia e as contradições socioeconômicas da população equatoriana, passando a estudar as possibilidades de atuação do Estado no combate à enfermidade. Então, sua preocupação passaria a ser com o tipo de infraestrutura de saúde pública à qual a população tinha acesso, com as formas de se garantir a oferta de tratamentos e medidas profiláticas adequadas. Graduou-se como médico aos 23 anos, em 1921, e a partir daí passou a exercer sua profissão – mais especificamente como ginecologista, empenhando-se no combate às doenças venéreas. Em paralelo à medicina, Paredes começara a se dedicar às leituras políticas, o que viria a lhe abrir as portas para a militância. Ao longo dos primeiros anos da década de 1920, concentrou-se em aprofundar seu conhecimento humanístico e filosófico – tendo contato com obras de Voltaire, Rousseau, Marx, Engels e Lênin, além de publicações socialistas produzidas na União Soviética. A realidade desigual de seu país se colocava como um elemento catalisador de seu espírito crítico e transformador, sobretudo com os acontecimentos de novembro de 1922, quando centenas de trabalhadores em greve foram assassinados pelo Exército equatoriano, em Guaiaquil. De 1922 a 1923, ministrou aulas de Biologia na mesma universidade em que se formara, além de instalar um consultório médico no Centro da capital. Em novembro de 1924, junto a alguns companheiros, lançou a revista La Antorcha, que funcionaria como um veículo de contestação da política do então presidente, o liberal José Luis Tamayo. No ano seguinte, este periódico passou a se chamar La Antorcha Socialista, tendo contribuído com a construção do Partido Socialista Ecuatoriano (PSE) – que seria fundado em 1926. Ainda em 1925, Paredes promoveu a formação de um grupo de socialistas em Guayas, estado cuja capital é Guaiaquil. Atuou então junto aos mentores da chamada Revolución Juliana – um movimento opositor à plutocracia vigente, levado a cabo por civis e militares que, mesmo sem chegar ao conflito armado, depuseram com um golpe de Estado o presidente Gonzalo Córdova (julho de 1925), substituindo-o por uma junta de governo. Esta revolução foi uma etapa importante para o movimento socialista nacional – havendo impulsionado medidas contra grandes capitalistas e latifundiários. Nesse mesmo ano, o comunista mexicano Rafael Ramos Pedrueza (1897-1943) visitou o Equador, com a função de organizar, junto a operários e intelectuais, um agrupamento comunista; foi então criada a Sección Comunista de Propaganda y Acción ‘Lenin en Quito’. Paredes estabeleceu contato com Pedrueza e, embora tenha se mantido independente desse grupo, viria a afirmar depois que já se “considerava um comunista”. Consciente da necessidade de envolver camponeses no movimento revolucionário, Paredes passou a se empenhar na construção de um movimento comunista em Cayambe, ao norte de Quito. Conheceu assim o líder comunitário Jesús Gualavisí, quem, no início de 1926 – ao lado da líder indígena socialista Dolores Cacuango – liderou um levantamento popular pelo direito das populações indígenas locais à posse das terras em que viviam. O protesto, ainda que reprimido, foi uma importante semente para a luta autóctone e camponesa. Paredes convidou então Gualavisí para participar da Asamblea Socialista, que ocorreria em Quito, com vistas à fundação de um partido socialista. Assim, em maio deste mesmo ano, com a participação de grupos socialistas de várias partes do país, seria constituído o Partido Socialista Ecuatoriano – tendo Ricardo Paredes como um de seus representantes provinciais no Conselho Central. Por seu papel de protagonismo, Paredes foi convidado a participar do VI Congresso da Internacional Comunista (IC), realizado em Moscou, em 1928, na qualidade de representante do PSE. Tal visita de dez meses à URSS significou para o comunista equatoriano uma tomada de consciência que lhe marcaria por toda a vida – o que se pode ler em seus artigos publicados à época nos periódicos LlamaradasContinuar lendo “O marxismo de Ricardo Paredes Romero”
O marxismo de Hal Draper
Editor, tradutor, bibliotecário e ensaísta, foi dirigente de organizações trotskistas estadunidenses e destacado estudioso da obra de Marx – tendo desenvolvido o conceito de “socialismo a partir de baixo” Por Felipe Cotrim * DRAPER, Hal; Harold Dubinsky (estadunidense; Nova Iorque, 1914 – Berkeley/ Estados Unidos, 1990). 1 – Vida e práxis política Filho de imigrantes de etnia ucraniana, oriundos do Império Russo, Harold Dubinsky, mais tarde conhecido como Hal Draper, nasceu e cresceu no distrito nova-iorquino do Brooklyn, tendo cursado o ensino médio na escola masculina Boys High School. Seu pai, Samuel Dubinsky, era gerente em uma fábrica de camisas. Sua mãe, Annie Kornblatt Dubinsky, mantinha uma loja de doces, meio pelo qual sustentou a família após a morte do marido, quando Hal tinha apenas dez anos. Hal Draper foi o irmão mais novo de Theodore Draper (1912-2006), que se tornaria historiador do movimento comunista estadunidense; seus outros irmãos foram Dorothy Rabkin e Robert Draper. A adoção do sobrenome “Draper”, sonoramente anglo-saxônico, foi ideia de sua mãe, visando proteger os filhos do preconceito, uma vez que “Dubinsky” denotava uma origem europeia oriental. Em 1934, graduou-se no Brooklyn College. Envolvido em política desde a adolescência, neste mesmo ano se tornou membro da Young People’s Socialist League [Liga Socialista da Juventude Popular] (YPSL) – a juventude do Socialist Party of America [Partido Socialista da América] (SPA) –, passando a militar contra o fascismo, as guerras e o desemprego, e se aproximando do trotskismo. Ainda jovem, Hal Draper se casou com Anne Kracik Draper (1917-1973), marxista e sindicalista envolvida nas lutas pela emancipação das mulheres. Juntos, militaram durante décadas em organizações trotskistas. Vivendo em Nova Iorque, durante a década de 1930 ele também atuou como editor-assistente do jornal trotskista Socialist Appeal [Chamado Socialista], lecionou em escolas de ensino médio da cidade e, pela YPSL, participou das insurreições estudantis – ocorridas no contexto da Grande Depressão (1929-1939). Em 1937, sendo uma das principais lideranças da YPSL, Draper criticou a “stalinização” da Internacional Comunista – a III Internacional (1919-1943) – e, após a entrada de militantes trotskistas no SPA, votou a favor da formação da IV Internacional (1938). Com esta decisão, apoiada pela maioria do partido, os demais membros ou saíram ou foram expulsos. Em 1938, Hal Draper rompeu com o SPA, ingressando então no Socialist Workers Party [Partido Socialista dos Trabalhadores] (SWP) – partido do qual foi secretário-nacional de Juventude, membro da primeira Executiva Nacional e secretário do National Education Department [Departamento Nacional de Educação]. Pouco mais tarde, Draper foi contra a ruptura no SWP (1940), cisão motivada pela chamada “questão russa”, ou “soviética” (a polêmica em torno do apoio incondicional ou oposição crítica à União Soviética), e pela concepção burocrática e hierárquica de partido defendida por James Cannon (então líder do SWP). Neste mesmo ano, Hal Draper saiu do SWP e ajudou a fundar o Worker’s Party [Partido dos Trabalhadores] (WP) – que seria dirigido por Max Shachtman. Este partido – que não apoiava a União Soviética, por considerá-la uma sociedade “burocrático-coletivista” – defendia um modelo socialista que se pretendia mais “democrático”, o que foi sintetizado no lema: “Nem Washington, nem Moscou, mas por um terceiro campo do socialismo independente!” – origem da corrente Third Camp Socialism [Terceiro Campo do Socialismo]. Em oposição à concepção de partido de James Cannon, o WP tentou desenvolver uma cultura interna menos hierárquica, com espaço a debates internos e sem repressão às dissidências. Em 1942, Hal Draper, depois de organizar seções políticas do WP no Leste de Massachusetts e na Filadélfia (entre 1941 e 1942), mudou-se para Los Angeles, onde também organizaria seções do partido. Aí, juntamente com sua esposa, trabalhou no distrito de San Pedro, como operário em estaleiros navais, e militou em campanhas antifascistas e antirracistas. Depois da II Guerra (1939-1945), ele retornou para Nova Iorque, onde passou a editar o The New International [A Nova Internacional], revista marxista primeiramente dirigida pelo SWP (entre 1934 e 1940) e, depois, pelo WP (entre 1940 e 1958). Em 1949, enfraquecido, o WP optou por deixar seu estatuto de “partido”, sendo rebatizado de Independent Socialist League [Liga Socialista Independente] (ISL). Durante os anos 1950, Draper assumiu também o cargo de editor do jornal da organização – o Labor Action [Ação Trabalhista] – até o racha de 1958, quando uma de suas alas, da qual ele era oposição, migrou para o SPA, desarticulando a ISL. No ano de 1958, Hal Draper teve problemas de saúde, os quais exigiam que ele vivesse em um local com clima mais ameno. Depois de viajar pela Europa com sua compenheira Anne, mudou-se para Oakland, Califórnia. Em 1960, o casal se fixou na vizinha Berkeley. Nesta cidade, Hal regressou à academia, obtendo seu mestrado em Biblioteconomia, pela University of California (UC), instituição onde também trabalhou como bibliotecário. Em 1961, ele fundou e foi membro do Conselho Editorial do New Politics [Nova Política], periódico sediado em Nova Iorque e ligado ao movimento do Terceiro Campo do Socialismo. Ainda este ano, escreveu uma obra de ficção científica: “Ms Fnd in a lbry: or, the day civilization collapsed” [“Sra. Fnd em uma bbltc: ou o dia em que a civilização colapsou”] (The Magazine of Fantasy and Science Fiction, 1961) – conto no qual satiriza a “era da informação”. Por este tempo, junto com o socialista Joel Geier, organizou também os Independent Socialist Clubs [Clubes Socialistas Independentes] (ISC), dedicados à preservação da tradição revolucionária terceiro-campista; estes clubes serviriam de base política para muitos militantes socialistas estadunidenses nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Durante os anos 1960, Hal Draper foi um dos mentores do Free Speech Movement [Movimento pela Liberdade de Expressão] (1964-1965), de Berkeley; do California Peace and Freedom Party [Partido Californiano da Paz e Liberdade] (PFP-California); do movimento de oposição à Guerra do Vietnã (1955-1975); e de outras organizações de esquerda precursoras da New Left [Nova Esquerda] (movimento político que se dedicou a novas reivindicações por direitos civis e políticos), nos Estados Unidos. Essa sua colaboração com o Free Speech Movement de Berkeley merece atençãoContinuar lendo “O marxismo de Hal Draper”
O marxismo de César Guardia Mayorga
Professor, filósofo, poeta e intelectual marxista, notabilizou-se pela defesa da Reforma Agrária e da cultura indígena como fundamentos da construção nacional peruana Por Sara Beatriz Guardia * [Tradução: Yuri Martins-Fontes e Pedro Rocha Curado] GUARDIA MAYORGA, César Augusto (peruano; Lampa/Peru, 1906 – Lima, 1983) 1 – Vida e práxis política César Augusto Guardia Mayorga nasceu no estado de Ayacucho, no Sul do Peru. Fez a escola fundamental no distrito de Lampa e o ensino médio no Colegio Nacional Nuestra Señora de Guadalupe, em Lima, e no Colegio Nacional Independencia, em Arequipa, onde editou a revista estudantil Burbujas. Em 1929, entrou na Faculdade de Letras da Universidad Nacional de San Agustín, em Arequipa; na mesma instituição, cinco anos depois, obteve seu doutorado em História, Filosofia e Letras com a tese Apuntes de la sierra (1934) – descrita por um de seus examinadores como “uma importante contribuição à sociografia nacional”. No ano seguinte, Mayorga se casou com a professora Manuela Aguirre Dongo, com quem teria seis filhos. E em 1937, deu início às atividades de docência na mesma universidade em que se formou, passando a ministrar o curso de História da Filosofia Antiga e Metafísica. Neste mesmo ano, obteve um registro para atuar como advogado e publicou seu primeiro livro Historia contemporánea. Em 1943, na qualidade de presidente da filial de Arequipa da Associación Nacional de Escritores, Artistas e Intelectuales (ANEA), foi convidado a dar palestras sobre temas filosóficos no Chile, para onde viajaria, proferindo seis conferências e estabelecendo aí fecundas amizades. Dois anos depois, foi nomeado vice-diretor da Facultad de Letras da Universidad de San Agustín e publicou sua conhecida obra Reconstruyendo el aprismo (1945). Com o objetivo de se dedicar à docência universitária, em 1946 interrompeu sua atividade na advocacia. Neste ano publicou Psicología infantil y del adolescente e fundou a Facultad de Educación na mesma universidade em que dava aulas, além de ter assumido o cargo de diretor do Colegio Universitario e de diretor de conferências do Colegio de Abogados. No ano seguinte veio à luz seu fascículo Filosofía y Ciencia (1947) e, em 1949, preocupado com o problema de se desenvolver a educação e a filosofia no Peru, Guardia publicou o livro Terminología filosófica e o artigo “Reforma Universitaria” – na Revista de la Universidad de San Agustín, periódico ao qual, como diretor, ele deu nova orientação editorial. Por este tempo, o general Manuel A. Odría (1948-1956) levara a cabo um golpe de Estado contra o presidente José Luis Bustamante y Rivero (outubro de 1948), inaugurando um regime militar que passou a reprimir seus opositores. Assim, a fim de se legitimar no poder, em 1950 Odría convocou eleições, nas quais que se apresentou como o único candidato. Como resposta, protestos tomaram forma e, em junho deste ano, estudantes do Colegio de la Independencia, de Arequipa, entraram em greve contra a farsa eleitoral organizada pela ditadura militar. Entrincheirados em suas posições, os jovens rechaçaram a entrada da polícia que, por sua vez, não hesitou em usar armas de fogo; sangue foi derramado pelos corredores enquanto os estudantes corriam para a Plaza de Armas sem outra defesa que não fosse a força de sua indignação. Uma vez ali, decidiram subir a torre da catedral para tocar os sinos, numa tentativa desesperada de reunir apoio. A população respondeu: pessoas tomaram as ruas, formaram barricadas, ocuparam estabelecimentos e exigiram a demissão do coronel Daniel Meza Cuadra, prefeito de Arequipa. O protesto durou vários dias. Em reunião aberta, os insurgentes proclamaram uma Junta Provisória, cuja primeira ação foi lançar um manifesto apontando o início da “revolução pela liberdade do povo peruano e a reivindicação dos direitos de cidadania”. Uma greve geral foi decretada em seguida, contando com a adesão de instituições como a Universidad Nacional de San Marcos, o Colegio de Guadalupe (Lima) e as universidades de Cuzco, Puno e Trujillo. A repressão do governo recrudesceu, até que a Universidad de San Agustín – ponto nevrálgico da resistência – caiu em poder do exército. A rebelião contra a ditadura havia sido derrubada. Cerca de um mês depois, o governo informou ao reitor Alberto Fuentes Llaguno que a universidade seria fechada se o clima de agitação política continuasse. Algum tempo depois, no início de 1952, César Guardia Mayorga e mais sete professores (Teodoro Núñez Ureta, Humberto Núñez Borja, Eduardo Rodríguez Olcay, Ernesto Rodríguez Olcay, Alfonso Montesinos, Javier Mayorga Goyzueta e Carlos Nicholson) foram expulsos da Universidad Nacional de San Agustín sob a acusação de fomentar a rebelião estudantil. Obrigado a deixar seu país, Guardia foi convidado pelo sociólogo comunista Arturo Urquidi, reitor da Universidad Mayor de San Simón de Cochabamba, para dar aulas nesta instituição boliviana; mudou-se então para o país vizinho, onde foi nomeado professor das disciplinas de Introdução à Filosofia e de História da Filosofia. Durante os anos em que viveu com sua família na Bolívia, organizou e dirigiu o Seminário de Filosofia desta universidade, foi membro da Comisión de la Reforma Universitaria e colaborou com as revistas Jurídica e Cultura (a qual era dirigida pelo intelectual e jornalista Eduardo Ocampo Moscoso). Neste período, o marxista peruano viveu um tempo conturbado da história boliviana – o primeiro governo do presidente Víctor Paz Estensoro (1952-1956) –, em que a Universidad de San Simón sofreu a intervenção de uma “comissão organizadora”, a qual impôs ao Conselho Universitário a demissão de Guardia, devido a sua filiação comunista, além de ter expulsado outros docentes bolivianos também socialistas. Diante da arbitrariedade, organizou-se uma greve geral de professores e estudantes, movimento que acabaria por conseguir que o Conselho Universitário revogasse a decisão. Guardia Mayorga foi então informado de que poderia voltar a lecionar suas disciplinas de Filosofia; porém, respondeu dizendo que só regressaria quando todos os demais professores que haviam sido dispensados fossem recontratados. Após três meses de greve e mobilizações estudantis, os professores sancionados voltaram às salas de aula. Na Universidad de San Simón, Guardia Mayorga proferiu algumas de suas conferências mais emblemáticas, tais como: “Concepto de la Filosofía”, “Rumbos de la Filosofía y la CienciaContinuar lendo “O marxismo de César Guardia Mayorga”
O marxismo de Euclides da Cunha
Engenheiro, jornalista dedicado a questões sociais e escritor (autor do clássico Os sertões), foi inicialmente influenciado pelo socialismo utópico, antes de se voltar ao marxismo, sendo adepto da II Internacional Por Mario Miranda Antonio Junior * CUNHA, Euclides Rodrigues Pimenta da (brasileiro; Cantagalo/RJ, 1866 – Rio de Janeiro, 1909). 1 – Vida e práxis política Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em Santa Rita do Rio Negro, hoje Euclidelândia, distrito municipal de Cantagalo, interior do estado do Rio de Janeiro, sendo filho de Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha e de Eudóxia Moreira da Cunha. Na época, o Brasil estava envolvido na Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870). Foi um período de intensas transformações sociais, econômicas, políticas – impulsionadas, por exemplo, pelas leis “Eusébio de Queiroz”, responsável pelo fim do tráfico negreiro, e “de Terras” (1850), fundamental para a ampliação da concentração fundiária no país, impedindo com isso a democratização do acesso à terra, sobretudo, aos trabalhadores imigrantes e ex-escravizados. Com este processo, garantiu-se o controle legalizado do monopólio agrário sob o domínio de poucos, bem como a disponibilidade de mão de obra barata, muitas vezes submetida ao trabalho não-assalariado, como era comum nas grandes propriedades (com as suas levas de posseiros, meeiros e agregados). Era o Brasil dos primórdios da indústria e da urbanização, do liberalismo político, do positivismo, do naturalismo; do abolicionismo e republicanismo; da expansão das ferrovias e do café em São Paulo e Rio de Janeiro, especialmente no Oeste Paulista (que desde 1880 ultrapassou a produção do Vale do Paraíba), móvel da economia agroexportadora até a década de 1930. A infância de Euclides da Cunha foi conturbada, perdendo a mãe com apenas três anos; como o pai não acreditou que teria condições de criá-lo sozinho, passou a viver com a irmã na casa de uma tia materna, em Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Pouco tempo depois a tia faleceu, obrigando os irmãos a se mudarem para casa de outros tios, em São Fidélis, cidade do mesmo Estado. Sua formação se deu na então capital federal (Rio de Janeiro), onde estudou no Colégio Aquino, na Escola Politécnica e na Escola Militar da Praia Vermelha, dos anos 1880 até meados de 1890. Lecionaram no Colégio Aquino figuras eminentes do Império, militares, políticos e cientistas, como o marechal Francisco Carlos da Luz, visconde do Rio Branco – pai do futuro barão do Rio Branco (amigo de Euclides) – e Joaquim Gomes de Souza, bastante conhecido à época por seus notáveis conhecimentos em matemática, física e astronomia. Além disto, entre 1878 e 1885 deu-se o protagonismo dos liberais no gabinete imperial e a consagração da “Escola do Recife” – de Tobias Barreto, Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua, Farias de Brito, Graça Aranha, Araripe Júnior, a chamada “Geração de 1870”. Foi nesse contexto que Euclides frequentou, de 1885 a 1893, as escolas Militar e Politécnica, tornando-se aluno e amigo de Benjamin Constant, um dos notáveis do movimento republicano e do positivismo no Brasil. Euclides da Cunha foi um dos principais representantes do movimento republicano brasileiro, um intenso agitador nos quartéis e redações de jornais e revistas – tendo escrito com frequência, entre 1884 e 1909, em periódicos de São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1888 escreveu sobre as “questões sociais”, fazendo uma apologia da democracia como sendo a característica dos regimes políticos daquele século. Ao longo de 1889, promoveu intensa agitação na imprensa em defesa da República, aludindo ao centenário da Revolução Francesa e seus heróis. Nestes anos de mobilização republicana, escreveu com frequência em A Província de São Paulo, que viria a ser, a partir da Proclamação da República, o jornal O Estado de S. Paulo. Nessa época de agitações e transformações sociopolíticas, a “questão social” ganhou centralidade no pensamento de Euclides, que a via como resultado dos problemas fundamentais do país, agravados com a consolidação do capitalismo, tais como: as contradições surgidas com o fim da escravidão, a reivindicação por trabalho assalariado livre, o acesso à educação laica e universal, o aumento da imigração estrangeira, a industrialização e a urbanização. Para ele, a Constituição de 1891 não havia assegurado as transformações políticas, econômicas e sociais que o ascendente proletariado almejava – insatisfação que se agravou com o fechamento do Congresso por Deodoro da Fonseca (1891), o autoritarismo de Floriano Peixoto (o “marechal de Ferro”) e a repressão contra as revoltas da Armada e Federalista. Desiludido com o governo republicano (àquela época ideologicamente inspirado no positivismo), Euclides licenciou-se do Exército e passou a atuar como engenheiro civil, cumprindo estágio na Estrada de Ferro Central do Brasil, até dar baixa e abandonar a farda definitivamente em 1896. Neste tempo, os ferroviários eram uma categoria já bastante consciente, sendo organizados e combativos – sua primeira grande greve ocorreu entre 1891 e 1892, no Rio de Janeiro, tendo sido brutalmente reprimida. Isto não passou despercebido ao olhar atento do jovem Euclides, que percebeu a importância das lutas destes trabalhadores para o movimento operário brasileiro. Em 1896, Euclides foi contratado pela Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo, tendo trabalhado em Santos, Bertioga, São José do Rio Pardo e São Paulo, dentre outras cidades – experiência que o colocou em contato direto com o jovem proletariado urbano, predominantemente anarquista e socialista. Por estes anos, tentou algumas vezes ingressar como docente na recém-criada Escola Politécnica de São Paulo (fundada em 1893). Para tanto, contou com a recomendação de destacados professores da Politécnica, como Theodoro Sampaio, Garcia Redondo e Ramos de Azevedo. Entretanto, não foi bem sucedido devido a controvérsias com Francisco de Paula Souza, diretor da instituição – Euclides havia publicado em O Estado de São Paulo artigos críticos ao projeto da escola. Ainda assim, ele persistiria em suas tentativas de se tornar professor até 1904, quando, após nova recusa da instituição, partiu para a Amazônia em missão diplomática. Ainda neste período do fim do século, um acontecimento marcaria a vida de Euclides: o início do conflito no arraial de Canudos, sertão da Bahia (novembro de 1896), quando camponesesContinuar lendo “O marxismo de Euclides da Cunha”
O marxismo de José Revueltas
Ensaísta, escritor, dramaturgo e roteirista, foi um intelectual comunista orgânico, tendo militado ativamente pelo Partido Comunista de México, e mais tarde pelo Partido Popular, Partido Obrero-Campesino e Liga Leninista Espartaco, da qual foi fundador Por Víctor Manuel Ramos Lemus * REVUELTAS, José (mexicano; Santiago Papasquiaro / México, 1914 – Cidade do México, 1976) 1 – Vida e práxis política José Maximiliano Revueltas Sánchez nasceu no estado de Durango, no Noroeste do México. Mudou-se para a Cidade do México em 1920, aos seis anos de idade, e foi matriculado no Colegio Alemán, o mesmo que havia sido frequentado pelos seus irmãos mais velhos. No entanto, com o falecimento do pai, em 1923, problemas econômicos afetaram a família, o que o obrigou a abandonar este colégio de elite e se transferir para o ensino público, além de ter sido obrigado a trabalhar desde cedo para apoiar o orçamento familiar. Foi membro de uma família de doze irmãos, três dos quais se distinguiram no âmbito da cultura: Silvestre Revueltas (proeminente músico e diretor de orquestra); Fermín Revueltas (que com Diego Rivera, Siqueiros, Orozco e outros integrou a primeira geração do muralismo pós-revolucionário); e Rosaura Revueltas (dançarina e atriz, protagonista de entre outros O sal da terra, filme de 1954 que se destacou por sua crítica social). Embora o próprio José Revueltas tenha afirmado que o impulso para sua militância política proveio do contato que teve, desde menino, com a realidade dos bairros pobres próximos a sua escola particular alemã (em que via ruas sem asfalto, esgoto ao ar livre e crianças magras), neste percurso foi também decisiva a influência dos seus irmãos Silvestre e Fermín, fervorosos militantes do Partido Comunista de México (PCM): Silvestre chegou a ser presidente da Liga de Escritores e Artistas Revolucionários em 1936; e Fermín foi um ativo militante do Sindicato de Obreros Técnicos, Pintores, Escultores do México (SOTPE). De acordo com José, foi explorando as ruas do mercado popular de La Merced, no centro da capital mexicana (onde sua família tinha uma mercearia), que estabeleceu contato com diversas figuras dos setores pobres e marginalizados da sociedade mexicana, como curandeiros, agiotas, cafetões, prostitutas e malandros. Tal vivência contribuiu para agudizar seu senso crítico diante de um país que, mesmo saindo de um período de luta armada revolucionária, ainda mantinha as estruturas de desigualdade econômica e política que historicamente o caracterizaram. Aos 13 anos, abandonou a escola, passando a ser um autodidata. Pouco tempo depois, começou a trabalhar em uma loja de ferragens, onde fez amizade com Manuel Rodríguez, um rapaz apelidado “Trotsky” porque lia muito o revolucionário russo e organizava, ao final do expediente, discussões sobre o socialismo com os colegas do estabelecimento. Foi graças a ele que Revueltas teve seu primeiro contato com muitos dos autores e temas vinculados ao marxismo. Em novembro de 1929, foi preso em um ato do PCM – declarado ilegal naquele ano –, organização da qual participava apenas como simpatizante. Ficou na cadeia por seis meses. Foi aí que, nas horas que tinha para ler, estudou intensamente o pensamento marxista, ao qual aderiu. Pouco depois de sua libertação, em 1930, filiou-se oficialmente ao partido. Por aqueles anos, estava acontecendo o trânsito da primeira para a segunda geração do marxismo no México, e os postulados da III Internacional, abraçados pelo núcleo duro do PCM, começavam a ser questionados por alguns dos seus militantes, como era o caso de Revueltas. Se, durante a primeira etapa, o raio de influência do PCM se estendia especialmente a sindicatos e organizações de caráter operário (como a dos artistas), na segunda, a política de “classe contra classe” foi questionada – afinal, tal estratégia já havia levado à ruptura entre comunistas e social-democratas na Europa. Em seu lugar, seria adotada pelo partido uma política de ampla unidade que foi conhecida internacionalmente como “Frente Popular”. É preciso dizer que a postura crítica mantida por Revueltas diante do PCM e da União Soviética (URSS) nunca afetou sua fidelidade ao marxismo, o que permite entender que, para ele, havia uma diferença entre militância e ideologia. Em duas ocasiões, em 1932 e 1934, foi preso e enviado às Islas Marías, um presídio de segurança máxima situado no Oceano Pacífico. Na primeira vez, havia participado de uma manifestação e, na segunda, estava envolvido em uma greve de trabalhadores agrícolas no estado de Nuevo León. Destas experiências, quase uma década depois, surgiu seu romance Los muros de agua (1941), cujo enredo trata de cinco jovens comunistas deportados a esse presídio; relacionando a situação entre os presos políticos e os presos comuns, a obra relata as violações aos direitos humanos e a degradação a que todos eles são submetidos. Em julho de 1935, foi enviado pelo PCM como delegado ao VI Congresso Internacional de Juventudes Comunistas e ao VII Congresso da Internacional Comunista (IC), do qual participou junto com Vicente Lombardo Toledano, principal intelectual marxista mexicano da época. Contudo, em 1943, Revueltas foi expulso do PCM, acusado de manter atividades “divisionistas”, juntamente com outros membros da célula José Carlos Mariátegui – que ele havia fundado em homenagem ao insigne marxista peruano. Sua expulsão foi um dos resultados da longa crise pela qual passou o partido, motivada por diferenças quanto a resoluções tomadas no VII Congresso, oito anos antes; sua célula fez então duras críticas ao diretório do PCM – que, por sua vez, respondeu acusando-o de “liquidacionista” (isto é, de querer acabar com o partido). Neste mesmo ano, após muito tempo de militância política e diversos trabalhos no jornalismo (inclusive em páginas policiais), publicou o romance El luto humano. Em 1944, sem partido, José Revueltas participou da criação de El Insurgente, um grupo marxista independente do PCM. A partir desse momento, começam também seus trabalhos como roteirista e dramaturgo. Em 1948, aderiu ao Partido Popular (PP), recém-fundado por Toledano. No ano seguinte publicou Los días terrenales, texto que ganhou destaque na literatura mexicana, gerando também polêmica entre os militantes do PCM. Dizendo-se “armado” com sua própria “experiência vivida”, o autor respondeu aos críticos que, na obra,Continuar lendo “O marxismo de José Revueltas”
O marxismo de José Carlos Mariátegui
Escritor, jornalista, editor, cientista social, filósofo e dirigente comunista peruano, foi pioneiro de um marxismo propriamente americano – trazendo ao centro do debate marxista temas como o do comunismo indígena e da necessária relação entre as posturas realista e romântica na construção revolucionária Por Yuri Martins-Fontes* MARIÁTEGUI, José Carlos; “Amauta”, “Juan Croniqueur” (peruano; Moquegua, 1894 – Lima, 1930) 1 – Vida e práxis política Nascido no Sul do Peru, José Carlos Mariátegui La Chira se mudou ainda criança para Huacho, cidade próxima à capital. Seu pai, funcionário público, cedo abandonou a família, cabendo à mãe, María Amalia La Chira Vallejos – costureira católica de ascendência indígena – criar os três filhos. Em 1902, Mariátegui sofreu um acidente na escola e fraturou o joelho – episódio que evoluiu mal, deixando-o manco. Entretanto, no tempo em que esteve internado em um hospital de Lima, dedicou-se a ler diversos livros a que teve acesso e a estudar francês – dando assim um primeiro impulso a sua extensa formação, que viria a ser sobretudo autodidata. Já em 1909, começou a trabalhar com tipografia no jornal La Prensa. No prelúdio da I Guerra Mundial, debutou na escrita, com crítica literária e versos, para logo publicar seus primeiros artigos jornalísticos com temas políticos. Sob o pseudônimo de Juan Croniqueur, satirizou a frivolidade limenha, demonstrando um amplo conhecimento que o aproximou de círculos intelectuais e artísticos de vanguarda, bem como do movimento operário (de linha anarquista) que se gestava desde o fim do século, trazido à América por imigrantes europeus. Destacando-se como jornalista, Mariátegui pouco depois se tornou cronista do jornal El Tiempo (1916), no qual passou a se dedicar ao embate político, denunciando a falsidade da “democracia mestiça”: um sistema demagógico que servia às classes dominantes como fonte de “divertimento”, desviando a atenção popular do fato de que a burguesia da região costeira, aliada aos grandes proprietários rurais do interior, tornavam o Peru cada vez mais um “setor colonial” do imperialismo estadunidense. Seus textos deste período se desenvolveram durante uma época de forte alta nos preços dos alimentos e consequente descontentamento popular, em que crescia a agitação dos trabalhadores – e entrava em crise o domínio político da oligarquia (financeira, extrativista e agroexportadora). Já adepto do socialismo, o autor apoiou greves e enfrentou a elite dirigente limenha. Em 1918, teve início em Córdoba (Argentina) um movimento pela Reforma Universitária, que depois abrangeria todo o continente; entusiasmado, Mariátegui afirmou ser este o “nascimento da nova geração latino-americana”. Ainda neste ano, participou da fundação da efêmera revista Nuestra Época, outro marco da política peruana daquele início de século: uma publicação que, se não traçava ainda um “programa socialista”, aparecia como um esforço ideológico nesta direção. Com isto, ele dava início a suas atividades como editor, o que perfaria importante parcela de sua atuação política madura: comunista. A vitória da Revolução Russa e o fim da I Guerra assinalou – no Peru e no mundo – um período de agitação das classes trabalhadoras. Em 1919, Mariátegui e seu camarada César Falcón fundaram o jornal La Razón – que logo se tornou uma voz destacada em prol das reivindicações operárias. Neste mesmo ano, uma greve geral foi reprimida na capital com violência e prisões; iniciava-se uma década de populismo de direita – economicamente pró-estadunidense, mas que também flertava com o movimento indigenista. Mariátegui, por meio de seu periódico, saiu em defesa dos líderes operários presos, atitude que fez com que ele viesse a ser aclamado por uma multidão nas ruas. Contudo, um mês depois, a redação do jornal foi fechada, e ele, ainda que de modo discreto, exilado na Europa, vindo a receber uma espécie de bolsa governamental – supostamente a título de propagandista do Peru no estrangeiro (em verdade, uma benesse conciliadora, já que por casualidade era parente da esposa do presidente Augusto Leguía). Como ele relataria (“Apuntes autobiográficos”, 1927), seguiu então viagem, rompendo com sua experiência inicial de literato “contaminado de decadentismo” (individualismo, ceticismo) e se voltando “resolutamente” ao socialismo. Viveu três anos e meio por lá (entre fim de 1919 e 1923), tendo conhecido alguns países: Hungria, Áustria, Tchecoslováquia, Alemanha, Suíça, França e, em especial, Itália, onde passou a residir. Em meio à influência da conjuntura ali experimentada – na qual ecoava alto a Revolução Soviética –, a Europa o aproximou das obras de Marx, Engels e Lênin, além do movimento comunista italiano e do surrealismo. No Partido Bolchevique ele enxergou a convergência entre teoria e prática, entre filosofia e ciência; afirmou que Lênin era “incontestavelmente” o revigorador “mais enérgico e fecundo do pensamento marxista”. Ainda segundo ele, nesse período, casou-se com “uma mulher e algumas ideias”; a italiana Anna Chiappe, sua companheira, transmitiu-lhe um “novo entusiasmo político”. A família dela era próxima ao filósofo Benedetto Croce, por meio de quem Mariátegui conheceria a obra de Georges Sorel – sindicalista-revolucionário do qual absorveu ideias como a do “mito da greve geral” e da defesa do uso da violência revolucionária contra a violência instituída. Na Itália, ele assistiu a ocupações de fábricas, congressos de trabalhadores e se aproximou do coletivo editor da revista L’Ordine Nuovo; participou de grupos de estudos socialistas, travou contato com o pensamento de Antonio Gramsci e de Umberto Terracini, e vivenciou a criação do Partido Comunista da Itália (a partir de cisão do Partido Socialista Italiano). Sua estada europeia foi também um mirante donde pôde observar o Oriente: a Revolução Chinesa e o despertar da Índia, dos árabes e dos diversos movimentos nacionalistas e anti-imperialistas do pós-guerra. Nestes acontecimentos, verificou um processo de declínio da sociedade ocidental. Tal concepção se reforçaria quando viu de perto a ascensão fascista italiana – o que percebeu como resposta do grande capital a uma profunda crise social e política. Em paralelo a esta efervescência sociopolítica, Mariátegui teve acesso às obras de Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche, interessando-se tanto pela recém-criada psicanálise, como pela filosofia intuitiva (ou vitalista). Porém, se de início ele trouxe consigo a humildade de um discípulo aberto ao então centro do pensamento moderno, progressivamenteContinuar lendo “O marxismo de José Carlos Mariátegui”
O marxismo de Raya Dunayevskaya
Jornalista, tradutora, editora e filósofa, trabalhou com Trótski, foi precursora do chamado “humanismo marxista” e se dedicou a ampliar as lutas sociais para além do recorte de classe, buscando integrar pautas do movimento feminista e negro Por Solange Struwka e Giovanna Imbernon * DUNAYEVSKAYA, Raya; Raya Shpigel; Rae Spiegel; “Freddie Forest”; “Freddie James” (russo-ucraniana-estadunidense; Yaryshiv/Império Russo, 1910 – Chicago/Estados Unidos, 1987). 1 – Vida e práxis política Raya Dunayevskaya, nascida Raya Shpigel, é oriunda da região ocidental do antigo Império Russo, atualmente o estado (oblast) de Vinnytsia, na Ucrânia (fronteira com a Moldávia). De sua cidade natal, acompanhou o processo revolucionário que transformaria a Rússia imperial na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). As duras condições locais de subsistência, o difuso ambiente antissemita e os efeitos da Guerra Civil Russa (1918-1922) fizeram com que, em 1922, sua família decidisse emigrar para os Estados Unidos (EUA) em busca de melhores condições de vida. Sem acesso à educação formal e falando apenas iídiche, Raya Shpigel (cujo nome passou a ser grafado Rae Spiegel no novo país) chegou ao gueto judeu de Chicago aos 12 anos de idade – quando afirmou ter visto, pela primeira vez, uma pessoa negra. Ali, sua família conviveu com discriminações e preconceitos por conta da religião e da condição de imigrante. Tal ambiente foi importante para a formação intelectual e militante de Dunayevskaya, a ponto de ela se considerar produto de duas “revoluções”: a da Rússia de 1917 e a dos guetos de Chicago. Começou a se interessar por política e pelo marxismo já na adolescência, a partir de sua ativa participação junto aos movimentos negros. Em 1925, filiou-se ao Negro Labor Congress (NLC) [Congresso Operário Negro] dos EUA –, uma organização que lutava contra a exploração dos trabalhadores e a discriminação racial sofrida pelos afroestadunidenses – passando a trabalhar na equipe de seu jornal, o The Negro Champions [Os Campeões Negros]. Em seguida, integrou-se à Young Communist League [Juventude Comunista] do Communist Party of the United State of America [Partido Comunista dos Estados Unidos da América] (CPUSA) – do qual seria expulsa em 1928 por ter questionado os motivos pelos quais Leon Trótski fora banido do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e da Internacional Comunista (IC). Por este tempo, aproximou-se do grupo de trotskistas de Boston que, excluído do CPUSA, fundou a Communist League of America [Liga Comunista da América] – organização dirigida por Antoinette Buchholz Konikow, médica marxista que militava pelo direito das mulheres à anticoncepção e ao aborto. Na década de 1930, Raya adotou o nome de solteira de sua mãe, Dunayevskaya. Em 1937, apesar de não ter permissão da organização de trotskistas, viajou ao México, para se aproximar de Trótski, então exilado na capital do país. Entre 1937 e 1938, aprendeu russo de maneira autodidata, intensificou diálogos e se tornou secretária e colaboradora do líder revolucionário – embora ainda sem autorização das organizações político-partidárias. Tudo isso em meio ao turbilhão político em torno dos chamados Processos de Moscou (série de julgamentos de opositores de Josef Stálin, movidos pelo governo soviético) e da Comissão Dewey (que averiguava as acusações contra Trótski durante estes julgamentos). Com o falecimento de seu pai e irmão, regressou a Chicago em 1938. No ano seguinte, havendo começado a II Guerra Mundial, Dunayevskaya rompeu com Trótski – por discordar de suas declarações em favor do posicionamento soviético no confronto, especialmente no que se referia ao acordo de não-agressão assinado pela URSS e pela Alemanha nazista (conhecido como Pacto Molotov-Ribbentrop). Seu afastamento de Trótski e do trotskismo foi duplo: físico, pois voltou a viver nos EUA; e teórico, uma vez que, imersa na realidade estadunidense, passou a entender o modelo “socialista soviético” à luz do conceito de “capitalismo de Estado” – isto é, segundo ela, a URSS se tornara uma forma de “Estado capitalista” – enquanto para o líder opositor exilado, apesar dos problemas que apontava, continuava a ser um “Estado de trabalhadores”. Em 1941, Raya sistematizou esta discussão, publicando em um boletim do Workers Party [Partido dos Trabalhadores] (WP) – partido ao qual se integrara no ano anterior – seu primeiro texto com maior impacto: “The Union of Soviet Socialist Republics is a capitalist society” [“A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é uma sociedade capitalista”], trabalho assinado com um pseudônimo (Freddie James), no qual se contrapôs à visão da maioria dos membros do partido, que entendiam a URSS como uma sociedade “coletivista burocrática”. No mesmo período, intensificou sua atuação junto aos movimentos negros, aproximando-se de C. L. R. James (que usava o pseudônimo J. R. Johnson) – autor do clássico The black jacobins [Os jacobinos negros]. Ambos tinham posições críticas semelhantes acerca do afastamento do Estado soviético do que imaginavam ser sua orientação original. Em 1945, fundaram juntos, dentro do WP, uma corrente marxista que viria a ser conhecida como “humanista” – também chamada de Johnson-Forest Tendency –, a qual contou com a contribuição de Grace Lee Boggs (de pseudônimo Ria Stone). Dentre os temas centrais abordados pelo grupo, estavam: o pensamento de Hegel e seu impacto na produção intelectual de Marx; e a questão étnica e o racismo. No ano de 1947, Raya Dunayevskaya participou da conferência da IV Internacional, em Paris, apresentando sua polêmica concepção sobre o que seria o “capitalismo de Estado” – ocasião em que se contrapôs aos argumentos do líder trotskista Ernest Mandel. Já no início dos anos 1950, a autora rompeu também com C. L. R. James. Neste tempo, ela atuou ativamente nas greves dos mineiros da Virgínia Ocidental (1949-1950), com cujas lideranças manteve fortes relações dentro e fora do âmbito do movimento grevista. A partir desta experiência, passou a analisar a presença e a participação de mulheres – esposas dos mineiros – nas greves. Verificando que eram retratadas pela imprensa como aquelas que tão somente acompanhavam os atos políticos, tratou de destacar nelas a função de ativistas – notando ainda que, por vezes, eram elas próprias que impulsionavam a movimentação dos homens. Ao observar que as intervenções realizadas pelas esposas não ocorriamContinuar lendo “O marxismo de Raya Dunayevskaya”
O marxismo de Eric Williams
Historiador e professor, liderou a independência de Trinidad e Tobago – de que foi por duas décadas primeiro-ministro –, destacando-se também como um dos marxistas que desvelaram os vínculos entre a escravidão na América e o capitalismo Por Gustavo Velloso* WILLIAMS, Eric (trinitário-tobaguense; Porto Espanha, 1911 – Porto Espanha, 1981) 1 – Vida e práxis política Eric Williams nasceu na capital de Trinidad e Tobago, no início do século XX, quando o país era ainda uma colônia britânica especializada na produção de cacau, açúcar, coco e petróleo para o abastecimento do império inglês. Nesta época, o passado escravista era ainda muito vivo, e havia deixado como herança para aquela sociedade colonial diferentes formas de exploração laboral e uma massa de trabalhadores majoritariamente negra, pobre e iletrada, paga com baixos salários. A administração colonial operava de acordo com o sistema de “colônia da coroa” (“crown colony system”), o que impedia os nativos de elegerem representantes próprios para o parlamento britânico; grande parte do poder político estava concentrado nas mãos de um único homem – George Ruthven le Hunt –, representante do monarca inglês e governante local. De origem familiar pobre, Williams era filho de um funcionário público de baixo escalão, trabalhador dos correios da cidade. Por via materna, o futuro historiador herdou ascendência mestiça de raízes africanas e francesas. Sua infância esteve marcada por muitas dificuldades materiais da família, embora com períodos de alívio. Como estudante, destacou-se na escola primária e, em 1922, conseguiu uma bolsa de estudos para ingressar no prestigioso Queen’s Royal College [Colégio Real da Rainha]. Permaneceu em Porto Espanha até 1931, ano em que conquistou uma das poucas vagas reservadas aos estudantes caribenhos que desejassem se transferir para Oxford ou Cambridge, na Inglaterra. Nesses anos de estudante, conheceu o historiador, jornalista e militante socialista Cyril Lionel Robert James, cujas ideias políticas o influenciariam. Em 1932, cruzou o oceano Atlântico em companhia de James para cursar História na University of Oxford, em Londres. Ali, estabeleceu contato com um círculo radical de intelectuais anticoloniais negros, do qual participavam, entre outros, os revolucionários Kwame Nkrumah e George Padmore, além do próprio James. Depois de ter se destacado nas aulas de história moderna, Williams enveredou para o campo da pesquisa histórica, obtendo o título de doutor em 1938. Um ano depois, começou a lecionar na Howard University, em Washington (Estados Unidos), onde viveu até 1948. Durante esse período, participou ativamente de debates sobre os horizontes que se colocavam para os países caribenhos – cujos processos de independência se aproximavam. Entre 1943 e 1955, integrou a Anglo-American Caribbean Commission [Comissão Anglo-Americana para o Caribe], destinada a impulsionar o desenvolvimento econômico e político das ilhas caribenhas. Por este tempo, Williams regressou a Trinidad e Tobago (1948) e passou a liderar um movimento não violento pela independência política do país. Em 1956, após negociações com a Grã-Bretanha, Trinidad e Tobago obteve o direito de se autogovernar em assuntos internos. No mesmo ano, Williams ajudou a fundar o People’s National Movement [Movimento Nacional Popular], um partido político imbuído do objetivo de capitanear o projeto independentista. Indicado para o posto de premiê da Federação das Índias Ocidentais (1959-1962) – que, além de Trinidad e Tobago, incluía as então colônias Jamaica, Barbados e Ilhas de Sotavento –, Williams conduziu com os britânicos as negociações que resultaram na proclamação da independência de seu país, em 1962. Figura dominante do cenário político de Trinidad e Tobago, ocupou o posto de primeiro-ministro do Estado independente entre 1962 e 1981, ano de seu falecimento. Seus esforços à frente do Estado trinitário-tobagense foram particularmente fortes no campo educacional e no fomento à modernização da estrutura produtiva nacional – através da diversificação agrícola e industrial. Porém, sua condução dessa transformação ocorreu através da abertura do país ao capital estrangeiro; isso fez com que Williams adquirisse a reputação de uma liderança moderada, o que por vezes rendeu-lhe críticas do campo da esquerda (além do afastamento definitivo de C. L. R. James). Um dos episódios mais representativos da gravidade das tensões entre Williams e uma ala radical dos setores socialistas de Trinidad e Tobago ocorreu a partir de 1970, quando uma onda de protestos contra os altos índices de desemprego e a presença de empresas estrangeiras no país, liderada pelo movimento Black Power [Poder Negro], resultou em uma drástica escalada de violência. Embora o líder do país tenha, a princípio, se manifestado favoravelmente aos militantes, sua sinalização de apoio foi incapaz de conter os protestos. Depois que uma greve geral foi proclamada – e uma ala do Exército aderiu ao movimento, começando a defender a renúncia do primeiro-ministro –, Williams decretou estado de emergência (suspenso por ele mesmo em 1972), e promoveu uma repressão contra os manifestantes, chegando a solicitar a intervenção dos EUA para acalmar a situação (o que não chegou a se concretizar). Por sua liderança no processo de emancipação política de seu país natal, por sua produção como intelectual e atuação como estadista Williams é considerado um dos indivíduos mais influentes da história de Trinidad e Tobago, sendo tido como um “pai da nação”. Obteve muitas honrarias nacionais e internacionais, tanto por seus esforços de aproximação bilateral com diversos países da periferia do sistema capitalista, como pelo pragmatismo de seu governo – expresso na cooperação com países do bloco capitalista durante a Guerra Fria. Morreu em sua casa, dormindo, aos 69 anos, em março de 1981. 2 – Contribuições ao marxismo Eric Williams não teve um compromisso, por assim dizer, “doutrinário” com o marxismo. Nunca se preocupou em se vincular a tal ou qual corrente marxista, em submeter suas ideias à prova de algum conceito ou categoria específicos do materialismo histórico, ou mesmo em pautar a sua produção escrita em função daquilo que pode ou não ser encontrado nos textos clássicos do marxismo. Assemelha-se aqui a C. L. R. James, seu antigo tutor, que não sobrepôs aos processos históricos reais – por ele observados –, formulações teóricas produzidas em contextos distintos (nem as de Trótski, que o influenciou, nem de qualquerContinuar lendo “O marxismo de Eric Williams”
O marxismo de David Alfaro Siqueiros
Pintor e escritor, participou da Revolução Mexicana (1910), foi ativo militante do Partido Comunista de México e protagonista do Movimiento Muralista – defendendo uma arte revolucionária e em sintonia com as lutas dos trabalhadores Por Felipe Santos Deveza * SIQUEIROS, David Alfaro (mexicano; Chihuahua/México, 1896 – Cuernavaca/México, 1974) 1 – Vida e práxis política David Alfaro Siqueiros, nascido José Jesus Alfaro Siqueiros, foi registrado como sendo natural da Cidade do México; porém, segundo hoje se sabe, nasceu na capital do estado de Chihuahua (Noroeste mexicano). Com cerca de 6 anos, mudou-se para Irapuato, no estado de Guanajuato, onde começou seus estudos. Aos 12 anos, pintou uma reprodução da Madonna della Seggiola, do artista renascentista Raphael, fato que entusiasmou seu pai para que contratasse o pintor muralista Eduardo Solares Gutierrez como seu professor. Dois anos depois, começou a frequentar a Academia de San Carlos e participou da Escuela de Pintura al Aire Libre, de Santa Anita – experiência que pretendia renovar os exercícios de pintura, naquela época ainda muito ligados à tradição acadêmica europeia clássica e confinados em espaços fechados. Durante as batalhas da Revolução Mexicana, mais especificamente após o golpe de Victoriano Huerta contra o governo de Francisco Madero (em 1913), alguns alunos da Escuela de Bellas Artes se alistaram entre as tropas revolucionárias; dentre eles Siqueiros, que serviu no Exército Constitucionalista até 1917, quando foi promulgada a nova constituição. Como soldado, viajou por todo o país, conhecendo melhor a cultura mexicana e travando contato com as lutas cotidianas dos operários e camponeses. Em Guadalajara, o jovem pintor conheceu a sua primeira esposa, Graciela Gachita Amador – que estudava folclore e dirigia teatros de bonecos –, com quem se casou em 1918. Nesta cidade, Siqueiros ajudou a organizar um congresso de Artistas Soldados e debateu com seus companheiros a polêmica que seguiria como um tema recorrente por várias palestras e artigos durante a sua vida: a relação entre a função da arte e sua forma; ou, de outra maneira, a relação entre política e pintura. Em 1921, Diego Rivera, que então estava vivendo na Europa, foi convidado por José Vasconcelos – ministro da Educação do governo pós-revolucionário de Álvaro Obregón (1920-1924) – para participar de um projeto que envolvia pintura. A ideia original do ministro era dar continuidade à pintura nas paredes dos prédios públicos com temas educativos dirigidos à população mexicana analfabeta ou com pouco acesso à literatura, à história e à ciência; para tanto, contratou uma série de artistas, entre eles Siqueiros (que regressaria a seu país em 1922), para interpretar a história mexicana e decorar as paredes de dois prédios públicos, no centro da capital. Estes murais inaugurariam o Movimiento Muralista Mexicano, nos anos 1920. Embora o projeto original tivesse um sentido educativo ainda estreito, a influência da entrada de grande parte desses muralistas no Partido Comunista de México (PCM) reorientou o conteúdo da proposta inicial das obras murais; Siqueiros desempenhou um papel fundamental de articulador e porta-voz do grupo. Foi a partir de sua iniciativa que nasceu o Sindicato de Obreros Técnicos Pintores y Escultores (SOTPE), agremiação que fundou o jornal El Machete (1924) – que no ano seguinte se tornou órgão central do PCM. O sindicato, organizado pelos muralistas, foi originalmente influenciado por uma perspectiva anarco-sindicalista – em uma época na qual o marxismo-leninismo apenas começava a ser divulgado no México. Desde então, e até os anos 1940, Siqueiros se dedicou à construção do Partido Comunista, de sindicatos e de organizações camponesas – como as Ligas Agraristas, influenciadas pelo PCM. Durante esse período, participou mais de greves, reuniões clandestinas, congressos operários e sindicatos, do que propriamente da realização de murais. Sua atividade artística esteve muito direcionada às charges publicadas em jornais operários, às caricaturas e à produção gráfica. O jornal El Machete, a revista peruana Amauta (de Mariátegui), a Correspondencia Sudamericana e El Liberador (onde Tina Modotti e Julio Mella publicaram artigos) tiveram impressos desenhos de Siqueiros – além dos materiais de propaganda dos sindicatos e das Ligas Agraristas. A partir de 1929, o PCM se tornou ilegal e inúmeros comunistas foram perseguidos. Siqueiros viajou então por diversos países, articulando o movimento comunista; participou do Congresso Sindical Latino-Americano, em Montevidéu, e representou o PCM na I Conferência Comunista Latino-Americana, ocorrida em Buenos Aires. Nesse meio tempo, havia também visitado a União Soviética (1927-1928), junto com o muralista Diego Rivera, e conhecido pessoalmente Josef Stálin, por intermédio de Vladimír Maiakóvski; este encontro foi narrado em suas memórias, num tom bem-humorado, onde revela, por exemplo, que o líder da URSS aprovava suas críticas sobre o excesso de academicismo na pintura soviética, mesmo depois de dez anos da Revolução Bolchevique. Em 1930, Siqueiros foi preso por suas atividades sindicalistas; na prisão produziu uma série de pinturas de cavalete e litografias. A partir deste ano, em um contexto de perseguição aos comunistas, os muralistas acabariam tendo que se mudar para os Estados Unidos, onde encontraram um entusiasmado público de jovens artistas interessados na novidade dos afrescos dos pintores mexicanos. Nos EUA, a obra de seu colega Diego Rivera obteve reconhecimento internacional, mas o período também correspondeu à cristalização de divergências entre os muralistas; o interesse pela obra de Rivera estava em sua temática mexicanista, em sua valorização das cores e dos motivos do México popular em composições épicas e ideologicamente engajadas com a luta política da época, expressa na dicotomia “revolução versus capitalismo”. Siqueiros, um inquieto polemista, começou então a criticar a obra de Rivera e a tentar apontar uma outra direção ao trabalho artístico desenvolvido pelos muralistas mexicanos. Após o golpe de Estado do general Francisco Franco – contra a II República Espanhola (1936) –, Siqueiros se alistou como voluntário nas Brigadas Internacionais; como tenente-coronel, lutou no fronte de batalha da Guerra Civil da Espanha. Após a queda de Barcelona e da ajuda prestada na articulação dos exilados, o comunista mexicano retornou a seu país. Junto à direção do PCM, em 1940, no calor do conflito com os nazistas, participou de uma tentativa frustrada de matar TrótskiContinuar lendo “O marxismo de David Alfaro Siqueiros”
O marxismo de Carlos Baliño
Operário, autodidata, jornalista, tradutor e editor militante, foi fundador do Partido Revolucionario Cubano (com José Martí) e do primeiro Partido Comunista de Cuba (com Julio Mella), sendo um dos precursores do marxismo na América Por Pablo Guadarrama González * [Tradução de Yuri Martins-Fontes e Lil Bidart] BALIÑO López, Carlos Benigno (cubano; Guanajay/Cuba, 1848 – Havana, 1926) 1 – Vida e práxis política Carlos Baliño passou sua infância em Guanajay, bastante identificado com as concepções de seu pai, um arquiteto e engenheiro perseguido por suas ideias independentistas. Em 1865, ingressou na Escuela Preparatoria Profesoral de Havana. Já naquela época, publicava versos e artigos em defesa da independência cubana, em jornais de Pinar del Río (o estado mais ocidental de Cuba). Em 1868, começou a estudar arquitetura e ingressou na Escuela Profesional de Dibujo, Pintura, Escultura y Grabado de San Alejandro (Havana), a qual abandonou devido à precária situação econômica de sua família. Devido ao acirramento da repressão política em seu país, em 1869, Baliño emigrou para os Estados Unidos da América (EUA), tendo inicialmente trabalhado em fábricas de tabaco na Flórida. No ano seguinte, decidiu se mudar para Nova Orleans, onde entraria em contato com as ideias marxistas por meio da organização sindical Noble and Holy Order of the Knights of Labour [Ordem Nobre e Sagrada dos Cavalheiros do Trabalho] e, mais tarde, do Socialist Labor Party [Partido Socialista do Trabalho], este último influenciado por Lasalle. Em 1892, Baliño apoiou José Martí na criação do Liceo Cubano de Cayo Hueso (nos EUA) e, sobretudo, na fundação do Partido Revolucionario Cubano – com vistas a alcançar a independência de Cuba e de Porto Rico. A partir de 1893, presidiu o Club de Emigrados Revolucionários de Thomasville; em 1894, declarou-se adepto do socialismo. Entre 1895 e 1897, fez numerosos discursos pela independência em muitas cidades estadunidenses; e publicou artigos no periódico La nueva república, em Tampa (Flórida), denunciando as ameaças imperialistas a Cuba. Em 1897, passou a viver em Jacksonville, onde traduziria vários livros críticos à política estadunidense, além de dar palestras sobre o socialismo a imigrantes cubanos. Após a intervenção dos EUA na guerra de independência cubana, Baliño em 1902 regressou a Cuba, passando a contribuir com o diário El mundo e com o jornal operário El proletario; por este tempo apoiou também a greve que ficou conhecida como Huelga de los Aprendices. Em 1903, fundou o Club de Propaganda Socialista de la Isla de Cuba – com o intuito de difundir as ideias marxistas. Um ano mais tarde, começou a colaborar com La voz obrera, órgão do Partido Obrero (PO) – agremiação que reivindicava a adoção do programa máximo da II Internacional. Baliño escreveu também as Bases fundamentales deste partido, nas quais propôs a socialização dos meios de produção, a conquista do poder político pelos trabalhadores e a luta por uma sociedade sem classes. Em 1905, publicou o folheto Verdades socialistas, no qual expunha sua concepção fundamentalmente marxista. No ano seguinte, foi eleito para a direção do agora Partido Obrero Socialista (POS), como passou a se denominar o PO; participou das celebrações do Primeiro de Maio em Matanzas e visitou outras cidades cubanas, incluindo Manzanillo (onde conheceu o socialista Agustín Martinillo Martín Veloz), em busca de apoio para a greve de la Moneda. Em 1906, participou da fundação do Partido Socialista de Cuba (PSC), oriundo da fusão do POS e da Agrupación Socialista Internacional, que também ajudara a criar – sendo eleito membro de seu Comitê Central. Em 1909, em polêmica com a Agrupación Socialista de la Habana, denunciou seu favorecimento aos trabalhadores imigrantes, a discriminação contra cubanos e o caráter reformista de seus objetivos. Em 1911, apoiou a greve dos trabalhadores da rede de esgotos da capital (Huelga del Alcantarillado). Quando a Revolução de Fevereiro de 1917 triunfou na Rússia, Baliño escreveu “En marcha hacia la vida y la liberdad”, no qual enfatizava o significado histórico do acontecimento; e, a partir de 1918, produziu vários artigos em apoio ao primeiro Estado operário e camponês. Em 1919, entrou para a Asociación Nacional de Emigrados Revolucionarios Cubanos. Dois anos depois, traduziu o livro de Scott Nearing, The American empire, do qual também elaborou o prólogo – em que reafirmou suas ideias anti-imperialistas. Em 1922, conseguiu que a Agrupación Socialista de la Habana criticasse o que considerava uma traição da II Internacional ao socialismo e aderisse à III Internacional; dirigiu a revista Espartaco, que difundia ideias socialistas, e colaborou com várias publicações de trabalhadores, entre elas o Boletín del torcedor. Em 1923, fundou a Agrupación Comunista de la Habana e, no ano seguinte, o jornal Lucha de clases, no qual eram divulgadas as ideias marxistas, especialmente as de Lênin. Por esses anos, começou a colaborar com Julio Antonio Mella na revista Juventud; em 1925, participaria com ele tanto da fundação da Sección Cubana de la Liga Antiimperialista, como do primeiro Partido Comunista de Cuba – de cujo Comitê Central foi eleito membro. No dia 18 de junho de 1926, morreu em Havana, em um momento no qual a ditadura de Gerardo Machado intensificava a repressão contra o movimento operário e comunista. 2 – Contribuições ao marxismo O pensamento político de Baliño, em seus primórdios, inclinava-se para as teses socialistas da II Internacional; mais tarde, porém, ele passaria a se identificar com as posições comunistas de Lênin e da III Internacional. O fato de o cubano ter entrado em contato com ideias socialistas e marxistas primeiramente nos Estados Unidos, no último terço do século XIX, fez com que sua formação filosófica e ideológica fosse permeada pelas obras sobre tais temas que então circulavam neste país – fundamentalmente em inglês. Em suas reflexões políticas dessa etapa inicial, caracterizada pelo reformismo, prevaleceu uma perspectiva histórica teleológica – como se deu também com outros socialistas latino-americanos –, segundo a qual a superação do capitalismo ocorreria inexoravelmente, de tal maneira que a atividade revolucionária prática não seria indispensável. Mas o marxista não permaneceu atado a esta concepção fatalista. E se suas primeiras ideias eram mais afins comContinuar lendo “O marxismo de Carlos Baliño”
O marxismo de Tina Modotti
Fotógrafa, jornalista, tradutora e atriz, buscou convergir estética e ética revolucionária; foi militante comunista e feminista, atuando pelo Socorro Vermelho (da Internacional Comunista), no México e em outros países Por Ândrea Francine Batista e Yuri Martins-Fontes * TINA MODOTTI; Modotti Mondini, Assunta Adelaide Luigia (ítalo-estadunidense-mexicana, Údine/Itália, 1896 – Cidade do México, 1942) 1 – Vida e práxis política Assunta Adelaide Luigia Modotti Mondini, ou Tina Modotti como ficou conhecida, nasceu numa família de operários italianos. Sua condição de vida exigiu que desde cedo trabalhasse com a mãe, Assunta Mondini Modotti, como costureira em uma fábrica. Seu pai, Giuseppe Saltarini Modotti chegou a trabalhar como fabricante de bicicletas de bambu numa pequena cidade da Áustria, mas em 1906 migrou para os Estados Unidos, em busca de trabalho, enquanto a família permaneceu na Itália. Ainda criança, Tina teve proximidade com as lutas sociais: seu padrinho de batismo, Demétrio Canal, foi integrante do círculo socialista de Udine; e seu pai, conforme ela afirma, foi um “socialista” e “firme defensor das causas sindicais”, levando-a certa vez em uma mobilização do dia 1º de maio. Conheceu a fotografia com seu tio Pietro Modotti, que possuía um pequeno estúdio, frequentemente visitado por ela. Com 16 anos de idade, em 1913, viajou ao encontro do pai, que vivia em São Francisco (EUA); desembarcou no país, justamente em um período no qual crescia a hostilidade à migração italiana – declarando-se estudante e sem vínculos com o movimento anarquista. Giuseppe assumiu o nome de Joseph, e trabalhou em sociedade num estúdio fotográfico, enquanto Tina e sua irmã Mercedez faziam serviços de costura. Encantada pela arte, Tina passou a frequentar teatros e exposições. Foi assim que, em 1915, estabeleceu relação com o pintor e poeta Roubaix de L’Abrie Richey – conhecido como Robo –, com quem se casaria. Mudaram-se para Los Angeles, onde atuou como atriz em peças teatrais, óperas e cinema; sua estreia na indústria cinematográfica se deu no filme The tiger’s coat. Com o passar dos anos e a movimentada vida artística, sua relação com Robo entrou em crise. Foi quando conheceu o fotógrafo Edward Weston, com quem aprenderia a arte fotográfica, iniciando assim sua carreira nesta área. Tina e Weston construiriam uma estreita e duradoura relação, tanto amorosa como de trabalho. Em 1921, Robo, a convite do Ministério de Educação do México, mudou-se para este país, levando trabalhos de Tina para montar uma exposição. Em fevereiro de 1922, ela se encontraria com Robo, mas recebeu a notícia de sua morte por varíola; empenhou-se, então, em concluir a mostra iniciada por ele – na Academia Nacional de Belas Artes, na Cidade do México. Em março do mesmo ano, seu pai faleceu, forçando-a a regressar aos EUA. Pouco depois, em 1923, Tina e Weston decidiram deixar os Estados Unidos, rumo ao México, animados com as possibilidades de encontrar aí um ambiente mais favorável para desenvolver sua criatividade artística e, inclusive, sua relação afetiva. Estabelecidos na capital do país, passaram a frequentar círculos de artistas socialistas, tendo logo conhecido o pintor muralista Diego Rivera (1886-1957). Em 1924, Tina posou para Weston, em um ensaio fotográfico de nudez – cujas imagens, mais tarde, seriam usadas por Rivera em alegorias de suas monumentais pinturas (no edifício central da Secretaría de Educación Pública, Cidade do México). Por esse tempo, Tina começou a trabalhar em projetos fotográficos, junto ao mexicano Manuel Álvarez Bravo (1902-2002), além de contribuir com as campanhas de solidariedade construídas pela Internacional Comunista (IC) – em que atuou especialmente contra a condenação de Nicola Sacco e Bartolomé Vanzetti (anarquistas italianos executados na cadeira elétrica, nos EUA), e no Comitê em Defesa da Nicarágua (contra a invasão estadunidense). Em 1927, Weston decidiu retornar definitivamente aos EUA; Tina permaneceu no México. Nesse mesmo ano, filiou-se definitivamente ao Partido Comunista Mexicano (PCM), colaborando com fotos e traduções para seu jornal El Machete. Considerou a atividade política com grande seriedade e consciência de suas responsabilidades. Engajada na luta revolucionária, sua fotografia tomou uma perspectiva de classe, ao documentar a vida cotidiana de trabalhadores, as lutas camponesas e mobilizações sociais. Tornou-se a principal fotógrafa do Movimento Muralista Mexicano, documentando obras de seus principais representantes – e também militantes socialistas: Diego Rivera (quem, por sua vez, a retrataria em seus murais), José Clemente Orozco (1883-1949) e Xavier Guerrero (1896-1974). Em sua casa, faziam reuniões informais para discutir o papel da arte e da literatura no processo revolucionário. Foi neste contexto que, em 1928, conheceu seu futuro companheiro Júlio Mella (1903-1929), liderança do Partido Comunista de Cuba, que se encontrava exilado no México; a relação duraria até o assassinato do marxista, no ano seguinte, por agentes do ditador cubano Gerardo Machado. Em meio às tensões políticas que caracterizaram o período, Mella foi morto em uma noite de janeiro de 1929, enquanto caminhava para se encontrar com Tina, após reunião na Seção Mexicana do Socorro Vermelho Internacional (SVI) – organização de apoio a perseguidos e prisioneiros políticos, vinculada à IC. Em meio à atmosfera anticomunista de então, além das próprias divergências entre comunistas, o assassinato envolveu muitas especulações; jornais locais chegaram a acusar Tina pela morte, mas ela foi logo inocentada, após investigação policial. Mesmo diante de um esgotamento emocional e político, ela prosseguiria firmemente sua militância no partido. No ano de 1929, Tina Modotti se envolveu intensamente com a fotografia. Na Biblioteca Nacional, fez a “Primeira exibição revolucionária do México”. Paralelamente, as perseguições anticomunistas aumentaram, impondo a clandestinidade ao PCM; as sedes do partido e do jornal El Machete foram fechadas, e vários dirigentes expulsos do país. Tina foi regularmente vigiada pela polícia até que, em fevereiro de 1930, foi deportada. O governo de Mussolini tentou sua extradição para a Itália, como subversiva, porém, por meio da ação do SVI, ela desembarcou na Alemanha – justo no momento em que se dava a ascensão do Partido Nazista e havia uma participação massiva da população em comícios de Adolf Hitler. Na Europa, dedicou-se a ações em defesa de presos políticos e realizou trabalhos clandestinos para a IC, noContinuar lendo “O marxismo de Tina Modotti”
O marxismo de Manuel Mora Valverde
Grande orador, advogado e fundador do Partido Comunista Costarricense – pelo qual foi deputado –, compreende a revolução como um processo de transformações institucionais a serem conduzidas com base na realidade dos trabalhadores Por Abel Cassol * MORA Valverde, Manuel (costarriquenho; São José, 1909 – São José, 1994) 1 – Vida e práxis política Manuel Mora Valverde é um dos principais lutadores sociais e pensadores políticos costarriquenhos do século XX. Foi uma referência para a formação política comunista caribenha e um destacado advogado. Nascido em uma família de classe média – ilustrada e empobrecida –, e primogênito de doze irmãos, recebeu desde cedo a influência do pai – o mestre-de-obras e dirigente operário José Rafael Mora Zuñiga –, tendo contato com atividades políticas e lutas sociais dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, herdou da mãe, Lydia Valverde, o espírito acadêmico e o interesse pelo conhecimento do mundo e das pessoas, ambos traços marcantes de sua personalidade ao longo da vida. Ainda criança teve que enfrentar, acompanhado da família, o exílio de seu pai na Nicarágua, após a casa em que residia ser alvo de um atentado; naquela época, a Costa Rica era governada por Alfredo Gonzáles Flores (1914-1917), um amigo do pai, que acabou sendo deposto por um golpe militar. No exílio, Manuel vê o progenitor organizar operários em grupos armados, de resistência e combate, contra o regime ditatorial imposto. Outro fato marcante do período é a morte de duas de suas irmãs, em virtude da falta de recursos familiares para tratamento médico. Esses eventos despertarão no jovem Mora um senso de justiça e igualdade que perdurará por toda sua trajetória política, acadêmica e intelectual. Fez seus estudos primários na Escola Juan Rudín, e os secundários no Liceu de Costa Rica, ambiente que fomentou personalidades – como Mario Echandi Jiménez (futuro presidente entre 1958 e 1962), de quem foi colega. Obteve tanto êxito na formação secundária que, após finalizá-la, o Ministério da Educação lhe ofereceu uma bolsa para que estudasse Matemática na França, convite por ele recusado. Iniciou sua atividade política com apenas 15 anos, quando começou a participar de reuniões da Liga Anti-Imperialista da Costa Rica, vinculada à Internacional Comunista e braço local da Liga Anti-Imperialista das Américas, coletivo formado à época por destacados intelectuais e ativistas nacionais, tais como Carmen Lyra, Carlos Luís Sáenz, Rómulo Betancourt e outros. Tais influências fizeram com que o jovem Mora participasse de associações antifascistas e de coletivos progressistas, tais como a Associação Revolucionária de Cultura Operária (ARCO), na qual ingressa em 1929. Esse processo de formação política e de luta social na juventude culminará com sua relevante participação na fundação, junto a um grupo de operários e estudantes, do Partido Comunista Costarricense (PCC), em 1931. Por este tempo, ingressa na Escola Nacional de Direito, instituição na qual obtém o título de bacharel, em 1940, iniciando sua carreira profissional como advogado. Em 1934, o recém-criado Partido Comunista organizou e mobilizou cerca de 10 mil trabalhadores rurais da região atlântica do país em torno da luta por melhores condições de trabalho na produção bananeira. Esse episódio, historicamente conhecido como Huelga bananera [Greve bananeira], é considerado a primeira ação coletiva proletária, na Costa Rica, contra uma empresa estadunidense – a famosa United Fruit. Nas eleições desse mesmo ano, Mora, ainda estudante de Direito e com só 25 anos, foi eleito um dos primeiros deputados comunistas do país, cargo para o qual será reeleito até 1948, quando eclode a Guerra Civil (que duraria de março a abril deste ano). Nesse período, ele sobressaiu como um excepcional orador, sempre pautando seus discursos e ações pela defesa dos trabalhadores, em especial os desempregados e pobres, e denunciando os privilégios da elite agrária nacional e suas relações com o imperialismo. Foi também responsável pela organização de quatro periódicos revolucionários nacionais, voltados ao fortalecimento da educação popular, à difusão dos ideais comunistas e à mobilização social das massas: La Revolución (1929-1931), Trabajo (1931-1948), Adelante (1953-1961), e Libertad (1961-1993). Em 1940, com o avanço do nazismo na Europa, Mora foi a principal figura da estratégia de ampliação de alianças, desenvolvida pelo Partido Comunista, com vistas a garantir a defesa das liberdades democráticas e dos interesses nacionais frente ao imperialismo. No plano local, a pressão por reformas sociais e econômicas – exercida por movimentos organizados pelos comunistas, tais como o Comité Sindical de Enlace e a Unión Nacional Campesina – também repercutirá na consolidação de tais alianças. Esse processo envolverá um acordo entre comunistas, setores progressistas da Igreja Católica e o governo de Calderón Guardia (1940-1944), resultando na modernização da institucionalidade estatal e na democratização das leis nacionais; uma espécie de “revolução jurídica sem sangue”, que promoverá a incorporação de garantias sociais na Carta Magna, a promulgação do Código de Trabalho Nacional, e criará a Caixa Nacional de Seguro Social. Um dos aspectos mais destacados dessas alianças foi a mudança de nome do Partido Comunista, que passa a se chamar Vanguarda Popular, com o objetivo de incorporar aos seus quadros cidadãos e políticos vinculados à Igreja Católica – os quais rejeitavam a denominação “comunista”, ainda que partilhassem de muitas de suas ideias. Em 1948, o não reconhecimento das eleições nacionais, por parte das elites tradicionais costarriquenhas, resultará no conflito referido – a Guerra Civil do país –, o que provocará o exílio de Mora no México (até 1950). Todavia, mesmo exilado, o marxista terá papel central no armistício (acordado ainda em 1948), sendo um dos negociadores do Pacto de Ochomogo, assinado em território costarriquenho (17 de abril), pelo próprio Mora e José Figueres Ferrer (líder do conservador Ejército de Liberación Nacional), sob o testemunho do padre Benjamin Nuñez Vargas. Apesar de tal acordo ter representado a manutenção das conquistas sociais alcançadas, ele não será cumprido pela junta de governo estabelecida, dominada pelas classes dominantes; assim, na Constituição de 1949, o Partido Comunista será posto na ilegalidade – gesto que resultará em perseguições, prisões e assassinatos de líderes socialistas, operários e camponeses. Somente em 1975, o PCC voltará à legalidade. Nos anos 1980, ManuelContinuar lendo “O marxismo de Manuel Mora Valverde”
O marxismo de Blas Roca
Autodidata, foi dirigente do primeiro e do atual Partido Comunista de Cuba, destacando-se como educador e divulgador do marxismo – pensamento que concebia como um guia a ser aplicado criativamente, e que buscou unir com as ideias de José Martí Por Lucilo Batlle Reyes* [Tradução de Yuri Martins-Fontes e Felipe Deveza] [PDF] BLAS ROCA; Wilfredo Calderío, Francisco (cubano; Manzanillo/Cuba, 1908 – Havana, 1987) 1 – Vida e práxis política Francisco Wilfredo Calderío López, conhecido como Blas Roca Calderío, nasceu em uma família de trabalhadores pobres e com tradição na luta pela independência cubana, sendo o mais velho de nove irmãos. Levou o sobrenome de sua mãe devido às normas da época. Na escola fundamental, mal alcançou a quarta série; ainda criança, teve que trabalhar em uma grande variedade de atividades para ajudar a sustentar sua casa. Sofreu forte opressão da sociedade burguesa-latifundiária e dependente de sua época, pois era pobre e mestiço – o que contribuiu para forjar seu espírito de rebelião contra a injustiça e a opressão. Com a ajuda de seu professor Ernesto Ramis, ainda bem moço, Wilfredo Calderío fez um curso de magistério, habilitando-se para lecionar na educação infantil; embora gostasse da profissão – que exerceu por dois anos (1924-1926) –, foi forçado a deixá-la, por não se submeter a manobras políticas. Assim, seguindo a tradição familiar, tornou-se sapateiro, e foi a partir daí que se ligaria para sempre às lutas da classe trabalhadora, unindo-se ao movimento sindical e travando contato com a literatura marxista. Em 1929, entrou no pioneiro Partido Comunista de Cuba (PCC), passando a dirigir o Sindicato dos Sapateiros de sua cidade; no ano seguinte, assumiu o cargo de secretário-geral da Federación Obrera de Manzanillo (FOM) e, ao mesmo tempo, secretário-local do partido. Nesta época sofreu sua primeira prisão política, no Castillo del Príncipe, em Havana, durante três meses. Em 1931, foi eleito membro do Comitê Central do PCC e, em 1932, preso pela segunda vez. Ao sair da prisão, no ano seguinte, preparou a greve geral em Manzanillo – contribuindo à mobilização que pôs fim à ditadura de Gerardo Machado. Já em 1933, participou do V Plenário do Comitê Central do PCC; neste evento, usou o pseudônimo Julio Martínez, mas logo, a pedido de Rubén Martínez Villena, adotou o pseudônimo Blas Roca – o qual, em 1939, quando foram convocadas as eleições para a Assembleia Constituinte, oficializou como seu verdadeiro nome. Ao retornar a Manzanillo, fundou o soviete de Mabay, o primeiro de Cuba. Pouco tempo depois, o partido o transferiu para Havana, incorporando-o como membro da Executiva Política (Birô) do Comitê Central. No fim de 1933, foi provisoriamente nomeado secretário-geral, cargo ratificado em 1934 (no II Congresso do Partido), no qual permaneceu até 1961, quando o Partido Socialista Popular (nome que o PCC passara a adotar em 1944) decidiu se dissolver para formar, juntamente com o Movimiento 26 de Julio e o Directorio Revolucionario 13 de Marzo, uma organização única dos revolucionários cubanos: as Organizaciones Revolucionarias Integradas (sob a liderança de Fidel Castro). Em agosto de 1934, Blas Roca fez sua primeira viagem à União Soviética para participar da reunião preparatória do VII Congresso da Internacional Comunista; um ano depois, chefiou a delegação do PCC em Moscou, sendo eleito membro de seu Comitê Executivo para a América Latina. Como tal, deu valiosa colaboração aos partidos operários e comunistas latino-americanos: caso de sua visita ao Brasil, durante a qual pôde encontrar Luiz Carlos Prestes na prisão, conversar com ele e ajudar a romper o isolamento em que fora mantido; e ainda, da atenção que deu ao Partido Comunista Mexicano, quando este atravessava uma crise de sua direção. Em 1940, presidiu a delegação do Partido Unión Revolucionaria Comunista (PURC), na Assembleia Constituinte. Desde então, até o golpe de Estado de Fulgência Batista, em 1952, foi membro da Câmara dos Deputados. Blas Roca forjou sua sólida cultura de maneira autodidata; lia de tudo. Em sua infância, entrou em contato com variadas obras, desde as de história cubana, às da literatura universal – como Os Miseráveis, Dom Quixote, entre outras disponíveis na biblioteca familiar. Isto alimentou seu pensamento com ideais democráticos e de justiça social, cujo núcleo foi o pensamento de José Martí. Mais tarde, quando começou a participar das lutas proletárias, entrou em contato com a literatura marxista. Leu então O ABC do Comunismo de Bukharin, O Estado e a Revolução de Lenin e A Crítica da Economia Política de Marx, que foram seguidos pelo Manifesto do Partido Comunista e pelo Capital, dentre outras obras clássicas do marxismo (à medida que chegavam em Cuba). Foi, enfim, uma síntese do intelectual revolucionário orgânico cubano do século XX, que articulou a cubanidade, a ética, o latino-americanismo e o anti-imperialismo de Martí, com a universalidade do marxismo-leninismo. A chegada de Blas Roca à alta direção do primeiro partido dos comunistas cubanos marca uma etapa qualitativamente superior no processo de amadurecimento marxista-leninista desta agremiação – enquanto instrumento político de vanguarda da revolução cubana. A experiência organizacional do marxista – nascida de sua militância de base, de estudos teóricos permanentes e de seu trabalho para unificar o partido –, juntamente com seu esforço e dedicação, o convenceu da necessidade de repensar a estratégia e as táticas do partido: como uma ciência da liderança da luta de classes dos trabalhadores, nas condições específicas dos países coloniais e dependentes. Assim, se iniciaria uma radical mudança tático-estratégica na ação partidária – centrada na luta pela legalidade, aliança com setores progressistas sem perda dos princípios de classe, propaganda revolucionária e busca por hegemonia. Após a vitória revolucionária de janeiro de 1959, na primeira plenária do PSP (fevereiro de 1959), Roca orientou o trabalho de seu partido no sentido de “defender a Revolução e fazê-la avançar”. Mais tarde, presidiu a comissão responsável por elaborar o projeto de Constituição da República – aprovada por referendo popular em 1976. Foi membro do Comitê Central do novo PCC desde sua fundação (1965), até falecer (1987), sendo enterrado com honras de general morto em guerra. “Deixou de existirContinuar lendo “O marxismo de Blas Roca”
O marxismo de José Antonio Arze
Sociólogo, educador, deputado, foi autor de um dos primeiros ensaios de interpretação marxista da realidade boliviana, e fundador do Partido de la Izquierda Revolucionaria (comunista) Por Marcos Vinicius Pansardi * [PDF] ARZE, José Antonio (boliviano; Cochabamba, 1904 – Cochabamba, 1955) 1 – Vida e práxis política José Antonio Arze y Arze nasceu no início do século XX, filho de José Tristán Arze, pequeno empresário e arrendatário de terras, em uma família de classe média sem fortuna. Estudou direito e ciências políticas na Universidad Mayor de San Simón (UMSS, Cochabamba), graduando-se em 1926. Foi diretor da biblioteca e professor de Direito Público nesta universidade; e, mais tarde, professor de Sociologia e de Direito Indianista na Universidad Mayor de San Andrés (UMSA, La Paz). Ainda bem moço, em 1921, fundou o Instituto Superior de Artesanos (ou Inst. Municipal Nocturno de Obreros), um estabelecimento educativo destinado a levar a cultura e as ideias socialistas ao proletariado. Ainda neste ano, ascendeu à diretoria da revista Arte y Trabajo, importante periódico fundado por Cesáreo Capriles, figura do nascente movimento radical boliviano. Esta revista, na qual Arze escrevia sob o pseudônimo de León Martel, teve um papel central ao dar publicidade a estudantes que viriam a ter relevante participação na política boliviana. Logo começou a editar sua própria revista literária, El Paladín, que teve três números. Em 1923, Arze viajou para Argentina, Uruguai e Chile, a cargo do Conselho Municipal de Cochabamba, para estudar os institutos de formação profissional para trabalhadores. Na Argentina, teve a oportunidade de vivenciar o clima da Reforma Universitária de 1918, tema pelo qual vai se interessar ao longo de toda a sua vida. Ainda neste ano, liderou um grupo de alunos da Faculdade de Direito, chegando a controlar a federação estudantil (seu grupo era conhecido como os “sovietistas”). Em 1928, durante o I Congreso Nacional de Estudiantes Universitarios, foi criada a Federación Universitaria Boliviana (FUB), que tinha por missão impulsionar a reforma universitária. Naquela ocasião, Arze e Ricardo Anaya assinaram juntos um documento considerado o primeiro ensaio de interpretação marxista da realidade boliviana. Por volta de 1928, tentou-se pela primeira vez fundar um partido comunista na Bolívia. Nessa empreitada estavam dois outros personagens fundamentais da futura história boliviana: José Aguirre Gainsborg e Walter Guevara Arze. Este partido ficou conhecido na historiografia com o nome de Partido Comunista clandestino (de sigla PCc). Porém, os delegados da Internacional Comunista (IC) rejeitaram esta organização, dissolveram o PCc e lhe impuseram o formato de Agrupación Comunista (alterando seu estatuto para o de um grupo, em vez de um partido). Em junho de 1929, Arze esteve em Buenos Aires participando da I Conferência dos Partidos Comunistas Latino-Americanos, que se realizou quase imediatamente após a fundação da Confederação Sindical Latino-Americana (CSLA) e do VI Congresso da Internacional Comunista. A chegada ao poder de Hernando Siles (1925-1930) carregou consigo a esperança do avanço de pautas reformadoras. Na composição do governo, Siles tratou de incluir jovens radicais universitários. Arze foi um dos que aceitaram o convite, sendo alocado na Comissão para a Reforma Universitária e no Ministério do Fomento (1929-1930). Esta seria a primeira de suas várias aproximações com setores governistas. À época, havia pessimismo quanto à possibilidade de os trabalhadores das cidades e do campo se organizarem autonomamente. Para o autor, a classe trabalhadora boliviana ainda estava em processo de formação e, portanto, não estaria pronta para se tornar um ator político relevante. Tal percepção da realidade nacional não se alterou com o passar dos anos, o que serviu para dotar seus projetos de organização política de um caráter policlassista. Nesta linha, algumas realizações foram alcançadas. A Revolução de 1930, na qual os dirigentes da FUB participaram até militarmente, instituiu a autonomia universitária, bandeira levantada por Arze. Ainda em 1931, o autor tentou criar uma organização política singular: a Confederación de Repúblicas Obreras del Pacífico (CROP) – algo como um partido comunista trinacional, incorporando organizações da Bolívia, Chile e Peru, o que idealizava como um núcleo propagador do internacionalismo proletário para todo o continente. Mas a proposta não chegaria a ganhar corpo. Em outubro de 1931, Arze viajou para Montevidéu para visitar o Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista, tentando viabilizar a transformação da CROP em uma seção boliviana da IC. Esta tentativa não teve sucesso, pois a IC via nesta organização a tentativa de se fundar uma nova Alianza Popular Revolucionaria Latinoamericana (APRA, partido criado pelo peruano Haya de la Torre), isto é, um projeto reformista de viés pequeno-burguês. Em dezembro de 1931 os cropistas cederam às críticas do Secretariado, dissolveram o grupo e renovaram suas atenções para a criação do PC Boliviano. Com o apoio da CSLA, chegaram a criar um Comitê Central Provisório – para compor um Partido Comunista no país. Contudo, assim como as tentativas anteriores, esta também virou letra morta. Os intentos de Arze esbarravam sempre na IC, ainda que ele tenha se esforçado muito para ser aceito pela organização; por várias vezes tentou criar um Partido Comunista em seu país, chegando mesmo a viajar para Moscou, mas em vão – foi sempre tratado como um intelectual pequeno-burguês e sua participação no movimento comunista nunca foi bem aceita. A negativa da IC em reconhecer e legitimar os esforços de Arze, a figura mais importante do movimento comunista boliviano do entreguerras, foi uma das principais causas pelas quais não se logrou criar um Partido Comunista na Bolívia antes da década de 1950. A despeito disto, ele se manteve fiel às linhas de atuação programática (e teórica) determinadas pela IC, mesmo sem jamais ter sido um quadro oficial desta organização. O fato de ter muitas vezes privilegiado os interesses da União Soviética – em detrimento de posições dos trabalhadores locais – lhe custaria o posterior ostracismo dentro do movimento trabalhista de seu país. Os biógrafos tendem a classificar Arze como um “stalinista”, mas isto deve ser relativizado. Certamente, ele demonstrou ter um fascínio pela URSS, e mesmo por Stálin, como ficou expresso no obituário deste líder soviético, escrito pelo boliviano em 1953, no qualContinuar lendo “O marxismo de José Antonio Arze”
O marxismo de Mário Pedrosa
Jornalista, crítico de arte e sobretudo um militante revolucionário internacionalista, defendeu a necessidade da revolução socialista brasileira, sob a liderança dos trabalhadores — organizados em partido próprio Por Everaldo de Oliveira Andrade * [PDF] PEDROSA, Mário (brasileiro; Timbaúba/Pernambuco, 1900 – Rio de Janeiro, 1981) 1 – Vida e práxis política Mário Xavier de Andrade Pedrosa nasceu na Zona da Mata pernambucana. Foi desde a juventude um filho desgarrado. Sua família era originária de senhores de engenho do Nordeste, que se voltaram depois para a administração pública; seu pai, Pedro da Cunha Pedrosa, foi senador e ministro do Tribunal de Contas. Mário Pedrosa foi enviado pela família, em 1913, para estudar na Europa, e lá ficou até 1916. Entre 1920 e 1923, na Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, tomou contato com as ideias socialistas e o marxismo, despertando para a vida política e intelectual a serviço da classe trabalhadora, luta de que jamais se separaria; formou-se em 1923, mas sua vida tomaria outros caminhos. Ele fez parte da primeira geração de militantes comunistas do Brasil que aderiam à luta revolucionária no momento seguinte à Revolução Russa (1917). Em 1925, se aproxima do PCB através do jornal A Classe Operária. No ano seguinte, filiou-se ao partido, e em março de 1927 começou a trabalhar em João Pessoa (PB) como agente fiscal, mas logo desistiu da profissão. Em São Paulo, assumiu o trabalho de organização do Socorro Vermelho (que apoiava prisioneiros políticos comunistas). Na mesma época, passou a escrever regularmente para a revista teórica do partido, e trabalhou como jornalista no jornal Folha da Manhã. No final de 1927 foi indicado pela direção do PCB para frequentar a Escola Leninista em Moscou, curso de formação de militantes da III Internacional. Em novembro de 1927, já em Berlim, aprofundam-se as crises políticas no interior do PCUS, na URSS. Ele ficaria na Europa até 1929, e aí aderiu às propostas da Oposição de Esquerda russa (dirigida então por Trótski, Kamenev e Zinoviev), que se contrapunha ao poder de Stálin. Mário voltou ao país em 1929, disposto a construir um núcleo da Oposição de Esquerda no PCB, e encontrou uma polêmica no partido – sobre alianças políticas –, que opunha Rodolpho Coutinho à maioria da direção. Iniciou então a organização do Grupo Comunista Lênin (GCL), lançado oficialmente em 1930, com a publicação do jornal Luta de Classes. Em 1933, junto a outros militantes, fundou a Editora Unitas, que passaria a publicar textos e livros revolucionários. Com a formação, em 1931, da Oposição Internacional de Esquerda, o grupo liderado por Pedrosa muda de nome para Liga Comunista do Brasil (LCB). Atuam com o objetivo de combater, dentro da III Internacional (IC), o stalinismo, visto como uma orientação que se afastava das bandeiras democráticas e revolucionárias. Nesse período, a IC se inclinava a uma política antifascista, de colaboração de classes com setores das burguesias. Ademais, agravava-se a pressão contra adversários do stalinismo, com muitas expulsões por divergências com a direção – ocasião em que sofreram perseguições inclusive antigos bolcheviques, que tinham sido companheiros de Lênin. No Brasil, Mário Pedrosa liderou a resistência, em particular a defesa da unidade da classe trabalhadora no combate ao fascismo – que se erguia. Em São Paulo, é formada a FUA (Frente Única Antifascista), agrupando muitas organizações socialistas e anarquistas, que passa a editar o jornal O Homem Livre (no qual Pedrosa publicou vários textos). Em 1934, a FUA decidiu impedir o desfile dos fascistas integralistas em São Paulo; ocorreu um confronto armado na Praça da Sé, e Pedrosa foi um dos atingidos por tiros. Nos anos seguintes, há novos choques políticos. Os comunistas brasileiros alinhados com Moscou, orientados pela IC a buscarem uma aliança com a burguesia, criam a ANL (Aliança Nacional Libertadora) – em uma tentativa de frente democrática ampla. Contudo, a aventura militar comunista de 1935 serviria como pretexto para a repressão ao conjunto das organizações dos trabalhadores, facilitando o caminho para a ditadura de Vargas. Pedrosa criticava a ANL, por ter nascido de um acordo entre dirigentes do Partido Comunista e alguns militares e políticos pequeno-burgueses. Sua ação ganhou praticamente toda a seção paulista do PCB, liderada por Hermínio Sachetta, num momento de crescentes perseguições (ditadura do Estado Novo). Pedrosa exilou-se na França, em 1937, fugindo da polícia varguista, e logo se integrou às tarefas políticas do movimento pela IV Internacional, um desdobramento da Oposição Internacional de Esquerda. Em 1938, em conferência realizada em Paris, foi delegado, representando as seções latino-americanas; ao final foi eleito representante da América Latina e membro do I Comitê Executivo da IV Internacional. No ano seguinte, mudou-se para Nova Iorque com toda a direção da IV Internacional, recém-eleita, e dois anos depois se afastou da organização, por discordar da proposta de defesa incondicional da URSS. Com o fim da guerra em 1945 e sua volta ao Brasil, Pedrosa dirige a publicação do jornal Vanguarda Socialista no Rio de Janeiro, agrupando antigos simpatizantes. O grupo em torno do jornal aproximou-se de outros grupos socialistas contrários ao stalinismo, e daria origem à chamada “Esquerda Democrática”, que teve seu manifesto de fundação aprovado em agosto de 1945; já em agosto de 1947, adota o nome de Partido Socialista Brasileiro (PSB), que duraria até 1965. Em 1956 o coletivo liderado por Pedrosa e Raquel de Queiroz se afasta e forma a Ação Democrática. Ao mesmo tempo que exercia ativamente sua militância política, Mário Pedrosa desenvolveu a atividade profissional de crítico de arte – sempre baseando sua análise no marxismo –, por meio de que buscou libertar a arte brasileira do seu isolamento nacional, provinciano. Defendeu para arte brasileira a necessidade da renovação da experiência, do espírito ventilado e internacionalista, valorizando ao mesmo tempo a identidade local. Tratava-se de um posicionamento político e libertário em relação à produção e criação artística, que se chocava de um lado com o nacionalismo conservador, mas também com o realismo socialista e panfletário dos artistas ligados ao PCB ou em sua esfera de influência. Esteve presente nos grandes eventosContinuar lendo “O marxismo de Mário Pedrosa”
O marxismo de Liborio Justo
Político, escritor, viajante, foi um dos introdutores do trotskismo na Argentina, aderiu ao movimento reformista, criticou a estrutura latifundiária e defendeu a luta dos povos originários e a integração continental Por Cristina Mateu * [Tradução de Yuri Martins-Fontes e Carlos Serrano] [PDF] JUSTO, Liborio; “Quebracho”; “Lobodón Garra” (argentino; Buenos Aires, 1902 – Buenos Aires, 2003) 1 – Vida e práxis política Liborio Justo nasceu no seio da oligarquia argentina, na virada do século XX. Em precoce autobiografia (Prontuario, 1940), apresenta as raízes, os enredos e vínculos políticos que marcaram sua vida, descrevendo como gerações de sua família estiveram ligadas a processos e a personagens da história nacional. Um de seus bisavós chegou à Argentina em 1829, nos tempos da guerra entre Unitários e Federais (entre 1820 e 1853), tornando-se proprietário de terras. Seu avô paterno, natural de Corrientes, foi deputado, poeta, historiador, maçom, autor do primeiro Código Rural correntino e, brevemente, governador desta província (1871). Seu avô materno, filho de espanhóis, integrou o Corpo de Caçadores, como encarregado da luta contra os indígenas araucanos na fronteira Sul, tendo posteriormente participado da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, em 1865. Seus pais pertenciam a antigas famílias de proprietários de terras “decadentes”, mas orgulhosas de sua posição social e desejosas de recuperá-la. Seu pai era capitão do exército, motivo pelo qual a família veio a se instalar nas proximidades de Campo de Mayo (zona militar próxima à capital federal) – período que ele recordaria como anos de isolamento social. O jovem Justo viveu ainda sob excessivos cuidados de familiares e empregados, em uma atmosfera de forte sentimento religioso, que o sufocava. Em 1911, entrou no colégio La Salle, em Buenos Aires – tendo detestado tanto a escola como a cidade. Seu interesse pela literatura e suas atitudes extravagantes foram sua resposta a uma educação que considerava “livresca e indigesta”, afrontando os privilégios sociais de um ambiente aristocrático e religioso que rejeitava. Suas preocupações recaíam sobre a origem da vida, do mundo, o destino do homem e seu próprio destino, as expressões americanistas que descobria – rejeitando as inclinações europeístas de sua família. Nessa época, dedicou-se com seriedade à leitura de autores russos, como Dostoiévski, e de latino-americanos, como Horacio Quiroga, além de participar de competições esportivas. O conhecimento escasso e confuso do jovem Justo sobre a situação mundial, na época de início da I Guerra Mundial, o levou a admirar a força da Alemanha e a desconhecer os acontecimentos sociais que abalavam a Rússia czarista. Em 1918, entrou na faculdade de Medicina, impelido pela família. Estes foram os tempos da luta estudantil pela Reforma Universitária, com a ocupação da Universidad Nacional de Córdoba, e da intensificação das lutas operárias que explodiriam na greve insurrecional conhecida como Semana Trágica. A agitação universitária e a confraternização com jovens de diferentes setores sociais abriram nova perspectiva para suas preocupações e buscas. Foi candidato a delegado, o que lhe permitiu estreitar laços com estudantes de direita e de esquerda. Durante este tempo, dedicou-se à fotografia e escreveu seus primeiros artigos – sobre questões universitárias. Avançou nos estudos de Medicina, continuando com sua militância junto ao centro acadêmico; tornou-se assistente de vacinação e ajudante de laboratório. A agitação universitária da Reforma, que propunha a destruição da velha universidade e a construção de um mundo novo, o aproximou da chamada Nueva Generación – que questionou a I Guerra e saudou a Revolução Socialista na Rússia. Em meio ao movimento estudantil, viajou com seu pai ao Chile, aproximando-se das pegadas indígenas do Caminho Inca e se comovendo com a imponente paisagem montanhosa do Aconcágua e da Patagônia. Esta foi uma das vezes em que se afastou da Faculdade, pela qual não se interessava. Apesar da abertura a novos horizontes políticos e sociais, entre 1921 e 1924 ele permaneceu preso a um ambiente social que desprezava. Os sentimentos contraditórios gerados por sua condição de intelectual burguês o faziam agir de maneira frívola, embora suas reflexões se fortalecessem por meio da leitura de escritores como Jack London, Kipling, Joseph Conrad (interessando-se pela cultura anglo-saxônica e pela arte renascentista italiana). O retorno ao curso de Medicina o colocou novamente em contato com a Nueva Generación e o movimento reformista – em cujos debates se denunciava a expansão imperialista dos Estados Unidos sobre o México e a América Central. Isto o levaria a estudar a história da América do Sul e começar a considerar a possibilidade de uma revolução continental como solução para os problemas sociais. A nomeação de seu pai como ministro da guerra, em 1922, fez com que este jovem rebelde se retraísse. Seu refúgio foi o estudo da história da Argentina e da América Latina, cujos países estavam submetidos aos interesses expansionistas dos EUA e de sua Doutrina Monroe. Em 1924, por ocasião do centenário da Batalha de Ayacucho, viajou com seu pai ao Peru, junto à delegação oficial, participando de opulentas celebrações. Neste país, constatou a miséria e a opressão das massas indígenas e mestiças, comprovando a má condição imposta pelo domínio colonial e imperialista a esses territórios – que haviam sido o centro do grande Império Inca e onde ainda permaneciam vestígios dos antigos ayllus originários (forma de organização social comunitária). Em 1925, zarpou do porto de La Plata para a Terra do Fogo, percorrendo as províncias de Santa Cruz e Chubut, visitando o campo petrolífero da empresa estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales. Partiu novamente para o Norte da Argentina, cruzando Entre Ríos, Corrientes e Misiones. Neste novo itinerário, escutou a língua guarani e descobriu a natureza exuberante da selva. Seguindo pelo Alto Paraná até as cataratas do Iguaçu, conheceu os mensús – trabalhadores contratados para serviços em moinhos e plantações de erva-mate, tratados como “verdadeiro gado humano” –, ouvindo relatos de exploração e escravidão. No trajeto, cruzou com os tenentistas brasileiros rebelados, vindos da Revolta Paulista de 1924, por meio de quem tomou conhecimento do general Isidoro Dias Lopes e da Coluna de Luiz Carlos Prestes. Sem recursos para prosseguir com suas aventuras, inscreveu-se como eletricistaContinuar lendo “O marxismo de Liborio Justo”
O marxismo de Luiz Carlos Prestes
Líder revolucionário e dirigente do Partido Comunista Brasileiro, protagonizou eventos históricos (Tenentismo, Aliança Nacional Libertadora), legando importantes contribuições para a compreensão da Revolução Brasileira Por Anita Leocadia Prestes * [PDF] PRESTES, Luiz Carlos; “Cavaleiro da Esperança” (brasileiro; Porto Alegre, 1898 – Rio de Janeiro, 1990) 1 – Vida e práxis política Nascido em Porto Alegre (RS), filho de Antônio Pereira Prestes, oficial do Exército que participou do movimento republicano de 1889, e Leocadia Felizardo Prestes, o jovem Prestes acompanhou os pais e as irmãs para viver no Rio de Janeiro em busca de tratamento para o pai, acometido de grave enfermidade. Em 1908, com o falecimento do pai, a família atravessa grandes dificuldades financeiras, enfrentadas com coragem por Leocadia na educação do filho e das suas quatro irmãs. Órfão de oficial do Exército, o jovem Prestes, gozando da gratuidade do ensino, ingressa no Colégio Militar, dando início aos onze anos à carreira militar. Aluno brilhante, em 1916, matricula-se na Escola Militar de Realengo (RJ), continuando sua formação como engenheiro militar, concluída em 1919, passando a servir na Companhia Ferroviária em Deodoro (RJ). Promovido a primeiro-tenente, Prestes participa da conspiração tenentista iniciada em 1921 e da preparação do levante de 5 de julho de 1922 na capital da República, do qual, acometido de tifo, não pôde participar. Derrotado em poucas horas, o movimento tornou-se conhecido com o Levante do Forte de Copacabana ou “Os 18 do Forte”. Sob a suspeita de conspirar contra o governo, o então capitão Prestes é transferido para o Rio Grande do Sul com a missão de fiscalizar a construção de quartéis. Suas denúncias da corrupção nessas unidades levaram as autoridades a transferi-lo para o comando de uma companhia do Primeiro Batalhão Ferroviário (1ºBF) de Santo Ângelo. A conspiração tenentista prosseguiu com os objetivos de: depor o presidente Artur Bernardes, passando o poder a um político que cumprisse a Constituição de 1891 então desrespeitada; e de introduzir o voto secreto, eliminando a fraude eleitoral e estabelecendo uma justiça independente que respeitasse os preceitos liberais consagrados pelo regime republicano. O programa era limitado, já que as questões sociais não eram contempladas e sua execução caberia aos militares. Os “tenentes” não pretendiam mobilizar o povo. Em 1924, teve lugar o “Segundo Cinco de Julho” – o levante tenentista em São Paulo, sob o comando do general Isidoro Dias Lopes e do major da Força Pública desse estado Miguel Costa. Violentamente reprimidos pelo governo federal, os rebeldes se deslocaram para o Sul do país, estabelecendo-se na região de Foz do Iguaçu. Prestes participava da conspiração tenentista no Rio Grande do Sul e, ao mesmo tempo, preparava os soldados do 1ºBF para atuarem organizadamente no levante projetado. Na cidade de Santo Ângelo, onde instalou nova iluminação elétrica, gozava de grande prestígio. Em setembro de 1924, pediu demissão do Exército para melhor conduzir a conspiração no estado. O levante rio-grandense teve início na noite de 28 de outubro. Inicialmente contou com a adesão de poucas unidades militares e de alguns caudilhos simpáticos aos “tenentes” liderados por Assis Brasil, chefe civil dos “tenentes”. Os rebeldes em sua maioria foram logo desbaratados pelas tropas inimigas. Apenas o batalhão sob o comando de Prestes e do tenente Mário Portela Fagundes, com a adesão total dos seus soldados, deslocou-se para São Luiz Gonzaga. Nessa região, Prestes e Portela organizaram cerca de 1500 combatentes, mal armados, mas resistindo ao cerco de 14.000 homens mobilizados pelo governador Borges de Medeiros, com o apoio do presidente Bernardes. Devido à inferioridade numérica e de armamento dos rebeldes, Prestes executou um outro tipo de tática, conhecida como “guerra de movimento”: deslocar-se com grande rapidez, mantendo contato com o inimigo para assim conhecer seus movimentos e persegui-lo com eficácia. As “potreadas” – pequenos grupos de soldados que se afastavam da tropa rebelde para obter informações levadas aos comandantes – cumpriam essa missão. Mobilidade e surpresa, dois aspectos importantes da “guerra de movimento”, garantiram aos rebeldes o rompimento do cerco de S. L. Gonzaga, a formação da Coluna Prestes e a marcha exitosa rumo ao Paraná, ao encontro dos companheiros remanescentes do levante de São Paulo. Em abril de 1925, reunido em Foz do Iguaçu, com oficiais das tropas paulistas que, derrotados pelo general Cândido Rondon, pretendiam em sua maioria abandonar a luta, Prestes, em nome da vitoriosa Coluna gaúcha, afirma a decisão de dar prosseguimento ao movimento rebelde, propondo a marcha pelo interior do Brasil, atraindo as tropas governistas e propiciando levantes tenentistas nas capitais litorâneas. Parte da oficialidade paulista aceita a proposta e as tropas sob seu comando são incorporadas à Coluna Prestes, como seria conhecida. Seus combatentes formam quatro destacamentos, Miguel Costa torna-se o comandante, e Prestes o chefe do Estado-Maior da Coluna reorganizada. Contando com menos de 1.500 combatentes, inclusive 50 mulheres, a Coluna percorreu 25.000 km, atravessando o Brasil de Sul a Norte, de Leste a Oeste, tendo passado por 13 estados e participado de 53 combates, sem sofrer derrotas e vencendo 18 generais governistas. Desmentindo a propaganda do governo, a Coluna procurou fazer justiça por onde passou, atraindo a simpatia da população com que teve contato. Devido à precariedade do seu contingente numérico e do armamento disponível, os rebeldes não puderam atingir seus objetivos políticos iniciais, migrando militarmente invictos para a Bolívia. O contato com a população do interior do Brasil, durante o périplo da Coluna, contribuiu para que Prestes – sob o impacto do quadro de miséria que observou e que o surpreendeu – decidisse dedicar-se ao estudo das suas causas, passando a defender o encerramento da marcha. A partir de fevereiro de 1927, na Bolívia, inicia a leitura de obras marxistas, levadas por jornalistas brasileiros e por Astrojildo Pereira, então secretário-geral do Partido Comunista do Brasil (PCB), que faz o primeiro contato desse partido com o “Cavaleiro da Esperança” (denominação então lançada pelo jornal carioca A Esquerda). Na Argentina, desde 1928, Prestes sobrevive do comércio, enfrentando dificuldades, e trabalha como engenheiro civil. Lê O Capital de Marx, O Estado e a Revolução deContinuar lendo “O marxismo de Luiz Carlos Prestes”
Dicionário marxismo na América: um resgate histórico de memórias combatentes
Após meia década de trabalhos coletivos, vem a público obra que registra vida, pensamento e práxis política dos primeiros marxistas das nações americanas Por Yuri Martins-Fontes, Joana Coutinho, Pedro Rocha Curado, Felipe Deveza, Paulo Alves Jr. e Solange Struwka * O Dicionário marxismo na América é uma obra de resgate histórico da memória dos primeiros pensadores e militantes que, a partir do referencial teórico do materialismo histórico, se dispuseram a refletir e enfrentar os problemas sociais, políticos e econômicos próprios das novas nações americanas, dando início ao desenvolvimento do pensamento-luta marxista no continente. Trabalho educacional e crítico de características inéditas, sobretudo em língua portuguesa, o projeto é coordenado pelo Núcleo Práxis de Pesquisa, Educação Popular e Política da Universidade de São Paulo – organização que se dedica a atividades políticas e de educação popular – e envolve atualmente quase uma centena de pesquisadores voluntários, de diversos países, nessa operação de investigação arqueológica das origens do marxismo nas Américas. Os primeiros tomos, previstos para mais de mil páginas, trazem verbetes que abarcam biografias e ensaios sobre as ideias e práxis política de cerca de 150 marxistas que viveram, escreveram e atuaram nos países americanos – em um período que abrange desde o século XIX (formação do marxismo no continente), até os anos 1970 (quando se agrava a crise estrutural capitalista e se multiplicam os marxismos). Por ora, após meia década de esforços coletivos, o dicionário marxista começa a vir a público de modo gradual: seus verbetes poderão ser lidos livremente na rede, no formato de “artigos”, disponíveis periodicamente no portal do Núcleo Práxis-USP e republicados por destacados portais parceiros. Esta degustação prévia – do primeiro volume, relativo ao período de formação do marxismo na América – se estenderá ao longo dos próximos anos, visando tanto a popularização da obra (cujo objetivo é não só teórico, mas educacional), como dar espaço a leituras críticas e eventuais aprimoramentos dos textos, antes de vir a público em formato livro. Aguardada para breve, a publicação completa está a cargo das Edições Práxis em coedição com a Editora Expressão Popular, e contará com duas edições: uma impressa (a preços populares) e outra digital (gratuita). Primórdios da obra Nos idos de 2015, os fundadores do Núcleo Práxis-USP, entre encontros políticos e debates do Grupo de Estudos sobre o Marxismo (um de seus primeiros projetos), começam a cogitar expandir as atividades do coletivo no sentido da educação popular. Era uma época difícil, em que se gestava no Brasil um golpe de Estado – concretizado no ano seguinte. Em meio a este contexto, dois novos projetos são pensados: um fórum de discussão sobre direitos sociais (que pouco mais tarde foi constituído, em parceria com associações e comunidades da capital paulista); e uma antologia, em um só tempo crítica e didática – que reunisse ensaios sobre destacados marxistas latino-americanos, de modo a oferecer a estudantes e trabalhadores um panorama das teorias e práticas marxistas desenvolvidas em nossa América. Nesse processo, o coordenador-geral do Núcleo Práxis, Yuri Martins-Fontes, em reunião no Laboratório de Economia Política e História Econômica da USP, expôs a ideia ao professor Wilson do Nascimento Barbosa, que dirigia as pesquisas da entidade. Em uma tarde de diálogo, a ideia se lapidou e expandiu. Ao invés de mais uma antologia, com complexos artigos, que tenderia a se restringir ao território da academia – ponderou-se: por que não reunir mais esforços e produzir uma obra maior, uma publicação educativa, de referência, com textos mais breves mas que dessem conta de apresentar a grande diversidade de problemas e correntes do marxismo desenvolvidas por mais de um século ao longo do continente – um livro que pudesse servir não só aos estudos secundários e universitários, mas à formação política de jovens socialistas? A semente estava plantada. O projeto chegou a ser redigido e apresentado a uma prestigiada editora, que requereu um verbete, como exemplo. O coordenador respondeu a solicitação, elaborando um primeiro texto sobre Mariátegui, baseado no modelo que recentemente desenvolvera em sua tese sobre o marxismo latino-americano (depois publicada como Marx na América). A editorial aprovou a publicação, embora ressaltando que naquela conjuntura não poderia se engajar na produção do projeto. A realidade nacional – econômica, social, cultural – que não era favorável, logo se deteriorou. O Núcleo Práxis-USP contava então com pouco mais de uma dezena de membros, dentre os quais poucos se dispuseram à aventura. Sem apoio material ou ao menos estrutural, o plano foi engavetado. O renascimento No ano de 2018, o Núcleo Práxis vive um período de crescimento, como resultado da movimentação em torno de seus projetos – em especial o Grupo de Estudos (que então lia O capital, de Marx), a tradução coletiva Historia y Filosofía (seleção de Caio Prado Júnior, publicada em 2020, na Argentina), e o Fórum de Formação Política de Lideranças Populares (cujas conversas regulares reuniam educadores e lideranças comunitárias). Muitos militantes – pesquisadores de diferentes áreas, universidades e países – aderem ao coletivo. Com este movimento de expansão, a organização ganha ânimo e braços para considerar novas ações. Reuniões sobre possíveis rumos se sucedem, até que é aprovado o plano de se construir uma publicação periódica: uma revista política de viés popular, que oferecesse a estudantes e trabalhadores alguma voz dissonante naquele ambiente fascista que reverberava no país – época de crescente irracionalidade, senão apoiada, consentida pela grande mídia e demais forças neoliberais, irritadiças com as reformas sociais (básicas) dos governos populares. Nossa experiência com periódicos era pequena – limitando-se à de poucos membros, que na década de 2000, haviam editado por alguns anos o tabloide A Palavra Latina. Por outro lado, o bom momento do coletivo se mostrava na própria intenção, manifesta por vários dos participantes, de se embrenhar em um projeto periódico – de fôlego. Há um vai-e-vem de propostas, debates, até que o plano Dicionário é retirado da gaveta. Parcialmente reelaborado, é apresentado a interessados, em reunião que tem lugar em teatro do Centro de São Paulo, reunindo membros do Núcleo Práxis que orbitavam a ideia da publicação, além deContinuar lendo “Dicionário marxismo na América: um resgate histórico de memórias combatentes”